O céu de Lima está sempre encoberto por um espesso manto de nuvens brancas. Ao menos era sempre assim que eu via a cidade no tempo em que trabalhei por lá. E, no entanto, nunca chove. Quando o avião decola, durante alguns minutos desfilam pela janela as casas sem telhados e os tetos que servem apenas como depósitos para coisas empoeiradas. Mas logo a cidade desaparece e a névoa branca envolve o avião no seu caminho ascendente até que surge o azul e o sol da manhã brilha intensamente. Alguns minutos adiante, já na travessia dos Andes, surgem as grandes crateras de vulcões e os picos nevados.
O voo até São Paulo foi tranquilo e o sono veio fácil.
Num movimento lento e constante, uma fenda foi se abrindo no centro da cidade e os carros se jogavam dentro dela. Do meu quarto no oitavo andar do hotel eu via o enorme abismo se aproximar e não conseguia reagir, paralisado, aguardando o desfecho inevitável. O telefone tocou e alguém me dizia, num espanhol confuso, para não entrar no elevador e nem me atirar pela janela.
Acordei com a aeromoça informando que dentro de alguns minutos iniciaríamos nossa descida para o Aeroporto de Guarulhos. Tempo bom e temperatura de vinte graus.
Lembrei-me do que se passou na primeira semana de trabalho em Lima. Fui recebido como autoridade e logo acomodado num hotel de luxo em Miraflores. À noite, quando eu voltava para o que era então “a minha casa”, ficava extasiado com as luzes do bairro vistas pela janela do meu quarto no oitavo andar. O idílio durou pouco. Durante uma reunião num prédio do governo próximo ao Porto de Callao, um forte terremoto fez todos os funcionários descerem correndo pelas escadas e se postarem num pátio interno, assustados e ofegantes, eu mais do que eles. O edifício tinha apenas dois andares. Foi o meu primeiro terremoto e nunca esquecerei a terrível sensação de perder o apoio do chão e ver o prédio inteiro tremer em minha volta.
Custei a dormir naquela noite, imaginando como seria se houvesse um terremoto durante a minha permanência no hotel. No dia seguinte pela manhã fui ao escritório do meu contratante e chorei as pitangas para deixar o luxuoso hotel e alugar uma simples casa térrea, sem importar a localização. A contragosto, eles me deram autorização e rapidamente aluguei uma casa em que a minha cama ficava junto a uma porta de correr de vidro, a meio metro do jardim.
Alguns dias depois fui convidado para uma festa na coberturade um prédio de doze andares. A dona da casa, muito gentil, veio conversar comigo e, preocupado com a situação, não consegui evitar uma menção ao medo de terremotos. Ela procurou me tranquilizar dizendo que os terremotos são frequentes em Lima, mas, na maioria das vezes, não chegam a causar maiores danos. E contou-me que certa vez, quando foi a São Paulo, se deparou com uma daquelas terríveis tempestades que escurecem o céu no final da tarde, em meio a raios e trovões, e ficou aterrorizada. Como em Lima não chove, essa tempestade parecia para ela algo ameaçador e muito preocupante. O mesmo deveria estar acontecendo comigo em relação aos corriqueiros terremotos limenhos.
Em Guarulhos, depois de uma longa espera, embarquei num avião para Brasília com escala em Goiânia. Era um domingo, 16 de setembro de 2001. Mais tarde vim a saber que eu estava no voo 2240 da Varig e que a aeronave era um Boeing 737-200.
Em geral eu prefiro sentar na poltrona junto ao corredor. Naquele voo, com muitos assentos vazios, encostei-me à janela e passei quase todo o tempo olhando distraidamente a paisagem. Na chegada a Goiânia, chovia muito e as trepidações aumentaram, mas nada que abalasse a minha tranquilidade. Perto do solo, percebi que alguma coisa estava errada na aproximação da pista, um desvio anormal, alguma coisa assim.
O que aconteceu em seguida foi questão de segundos. Debaixo da forte tempestade, o avião tocou o solo fora da pista, houve um estrondo, ele inclinou-se para a direita (o lado em que eu estava) e arrastou-se por muitos metros até uma manobra súbita que o recolocou na pista novamente, mas, desta vez, sem o trem de pouso que havia se quebrado. Dentro, o pânico era total, as pessoas gritando, as bagagens voando e muita fumaça; alguns passageiros foram lançados para fora das poltronas e várias delas se deslocaram para o corredor. Pela janela, vi que a asa do avião havia se partido e o que sobrou dela se arrastava no chão. A enorme turbina saiu voando e foi parar a 300 metros da pista.
Dentro da pista, o avião literalmente se arrastou de lado por quase 600 metros. Apavorado, coloquei os pés no encosto da poltrona à minha frente, fechei os olhos e esperei pela morte que viria quando aquela enorme massa desgovernada explodisse ou se chocasse contra algum obstáculo. Tive a sensação mais vívida do fim que alguém pode ter. Para minha surpresa, o avião parou repentinamente e, ainda tonto, ouvi os gritos desesperados das aeromoças que, junto da porta aberta, alertavam os passageiros sobre o risco de explosão e os incitavam a sair correndo. Como sair correndo no meio de todos aqueles escombros, com a fumaça embaçando tudo e doendo nos olhos? Além de tudo, o avião estava muito inclinado para o lado em que eu estava e cai na primeira tentativa quando quis chegar ao corredor. Quase impotente, olhei pela janela e vi o combustível jorrando da asa quebrada. Acho que foi isso que me estimulou a tentar novamente.
Como o corredor estava cheio de gente tentando escapar da explosão iminente, tive a infeliz ideia de pegar uma sacola com duas garrafas de whisky que havia comprado no free shop de São Paulo e a pasta com o meu notebook, uma em cada mão. Quando consegui chegar ao escorregador inflável, o peso da carga me obrigou a descer de cabeça e assim atingir a pista. Acho que bati o recorde olímpico de agilidade para ficar em pé e de velocidade na corrida desesperada para me afastar o mais possível da aeronave. Já distante, vi que o avião não havia pegado fogo, talvez por causa da tempestade que caia, que sei eu? Alguns passageiros se feriram no acidente, mas nenhum gravemente.
Um fato me deixou intrigado até muito tempo depois. Durante o voo eu havia lido um artigo que julguei ser de interesse para a Rosana; recortei e guardei naquela bolsa em frente ao meu assento. No sufoco da evacuação, quando tudo indicava um alto risco de explosão, tive o impulso de voltar ao meu lugar e recuperar o recorte de jornal. Se não fiz isso foi porque, simplesmente, o aglomerado de pessoas não permitia. Pensei comigo mais tarde: talvez a situação de perigo tenha me deixado louco por alguns instantes, pois só um louco teria o ímpetode voltar para recuperar um pedaço de jornal.
Demorei meses para matar a charada. Em situações limites, a mente procura se defender do risco de extinção e gera um derivativo – ainda que absurdo como naquele caso – ou seja, uma espécie de negativa da ideia de morte. Não sei se estou certo, mas a explicação me satisfaz.
Por conta de um trabalho, voltei diversas vezes a Goiânia nos meses seguintes e, a cada vez, acompanhava o destino do avião acidentado. Ele foi arrastado até um local próximo ao desembarque de passageiros e ali ficou. Um funcionário da Varig me informou que a perda foi total e não havia como recuperar a aeronave. Aos poucos foram retirando o pouco que havia de aproveitável, até que sobrou apenas a carcaça. Um dia, quando voltei por lá, a carcaça havia sumido. Fiquei curioso com o destino que lhe foi dado, mas não tive tempo de perguntar no Aeroporto.
Tomei um taxi e segui na direção do centro. No meio do caminho, bem ao lado da avenida, lá estava a carcaça do fatídico avião transformada num bar, restaurante ou coisa parecida.
Hoje, muitos anos passados, restou o que guardei em minha memória, cada dia mais frágil.