Entrevista com José Ribas Cadaval[1]
“Dentro de pouco tempo, a navegação aérea não será mais um mito, será uma realidade pura e completa”, José Ribas Cadaval.
José Ribas Cadaval, médico, inventor e autor do livro Tratado de Aeronáutica[2], primeira obra de um brasileiro sobre o tema, publicada em 1913, viveu no auge da segunda Revolução Industrial. Era a época do surgimento de grandes invenções, como o avião e o navio a motor. Em poucos anos, o mundo assistiu a um desenvolvimento significativo das tecnologias para a indústria química, elétrica, de petróleo e do aço, com enormes consequências na economia e na vida da população.
Havia uma grande ebulição na área de ciência e tecnologia e as boas ideias se transformavam rapidamente em produtos, a maior parte deles voltados ao mundo militar. No curto período entre as duas grandes guerras mundiais, os países sabiam que a paz não seria duradoura. Quem estivesse mais preparado largaria na frente.
Imbuído pela filosofia em voga à época, o positivismo, e por uma grande dose de patriotismo, Cadaval buscava contribuir, com a publicação de seu Tratado, para o desenvolvimento de uma “aeronáutica militar” no Brasil, o que envolveria a fundação de uma escola e a criação de um arsenal de guerra, com a construção de dirigíveis e de outros aparelhos de navegação aérea.
Apenas sete anos antes, em 1906, Santos Dumont havia realizado o primeiro voo público de que se tem notícia, circulando a torre Eiffel a bordo do 14 Bis. A indústria aeronáutica, portanto, ainda não existia e o conhecimento científico e técnico sobre o tema estava em desenvolvimento.
Ribas Cadaval, apesar de não ser matemático ou engenheiro, estudou as teorias que havia até então e, com base nelas, inventou e conquistou a patente de um novo aparelho, o “aerostoplano”, um sistema híbrido entre um balão dirigível e um aeroplano.
Na entrevista* a seguir, questionamos Ribas Cadaval sobre detalhes de sua história, suas motivações e seus projetos.
Quando o senhor começou a se envolver com a aeronáutica?
Corria o ano de 1897 quando voei pela primeira vez. A bordo de um balão cativo, subi a 1000 metros acima do solo, marca significativa para a época. Eu tinha 34 anos e estava trabalhando como médico da Armada no navio cruzador-torpedeiro Tupy. Quando surgiu a oportunidade de embarcar em um balão que fazia testes aéreos nas proximidades de Bruxelas, em companhia do aeronauta Baud Filho, não hesitei. Na longa viagem de volta da Europa para o Brasil a bordo do Tupy, me dediquei a idealizar o projeto de um balão dirigível.
O que o motivou a estudar este tema?
Era claro para mim que o avanço da aeronáutica, muito mais do que satisfazer desejos inconscientes do ser humano, ligados às ideias de voo e liberdade, oferece um alto interesse prático à humanidade, que justifica todos os esforços e sacrifícios envolvidos no processo.
Quanto mais me envolvo com o tema, mais percebo que o Brasil precisa disso! Somos uma grande potência mundial e, apesar de não sermos um país conquistador, precisamos estar suficientemente aparelhados para garantir a defesa territorial e a soberania nacional. O que me encorajou neste caminho é, devo admitir, a vaidade do inventor, mas também o entusiasmo de patriota.
Em 1908, o senhor apresentou um protótipo de dois metros de uma aeronave a autoridades civis e militares, inclusive ao Marechal Hermes da Fonseca, Ministro da Guerra, e à imprensa. Como era este projeto?
Tratava-se de um balão, batizado de “Cruzador Aéreo Hermes”, que já trazia as origens da ideia que me deu destaque na aeronáutica: os planos de sustentação. Ou seja, ele foi projetado de tal forma que, se a força para subir faltasse, ainda assim a máquina seria capaz de planar, descendo demoradamente e evitando acidentes.
Como era uma máquina de uso militar, incluí como armas os torpedos-flecha e o “devastador incendiário”, substância que eu mesma inventei e que, depois de liberada, se espalhava queimando tudo que houvesse pelo caminho. Cada quilo da substância poderia se espalhar por uma área de 25 metros quadrados, com labaredas intensas e duradouras.
Hoje, no século XXI, as aeronaves voam a mais de 10 mil metros de altitude e a velocidades em torno de 900 quilômetros por hora. Comparativamente, como era o cruzador Hermes?
Bem, com a tecnologia disponível à época, previmos que ele seria movido por um motor de 60 cavalos e conteria 2,5 mil metros cúbicos de gás hidrogênio, podendo atingir 90 quilômetros por hora e cerca de 1000 metros de altitude. A aeronave seria feita de alumínio na metade inferior e seda na parte superior. Hoje, além do alumínio, se usam materiais sofisticados que não existiam à época, como fibras de vidro e de carbono.
O senhor chegou a aperfeiçoar este projeto. Como foi isto?
Alguns anos mais tarde, aprimorei a ideia inicial ao desenvolver o projeto de um “aerostoplano” – sistema misto que inventei, que utiliza a aerostação, ou seja, a construção de aparelhos mais leves do ar, como os balões, conjugada ao sistema dos aeroplanos, que precisam de um motor e um propulsor para voar, já que são mais pesados que o ar.
Nesta época, o senhor estava totalmente dedicado à aeronáutica e chegou a realizar experiências em um túnel de vento na Suíça, tendo sido o primeiro brasileiro a trabalhar com este tipo de teste. Como foi este período e o quê mais o senhor desenvolveu por lá?
Bom, em 1909 eu pedi licença da Marinha para estudar eletroterapia e higiene naval na Europa e nos Estados Unidos. Estudei os dois temas, mas também aproveitei para aperfeiçoar meus conhecimentos aeronáuticos e, inclusive, cursei a Escola Superior de Aeronáutica de Paris.
Em 1911, obtive o primeiro sucesso: consegui a patente francesa para um “aeróstato planador dirigível”, ou seja, o aerostoplano, o que mostra que a minha invenção era viável e inédita.
Em 1912, montei um gabinete aerodinâmico para estudar a reação do ar sobre corpos em movimento em Teufen, na Suíça. Lá, construí um túnel de vento de 23 metros de comprimento e 3 metros de largura, que serviu para que eu testasse modelos reduzidos de aeronaves.
Quando voltei ao Brasil, pedi ao Ministro da Marinha, o contra-almirante Joaquim Marques Batista de Leão, autorização para construir na Escola Naval da Ilha das Enxadas o meu mais novo projeto: o Hidroplano Estável Cadaval.
E ele foi construído?
Infelizmente, não. O professor responsável pela escola, o capitão-de-corveta José Pinto da Motta Porto despachou meu pedido informando que as oficinas teriam condições técnicas para a construção do hidroplano, mas que ele não iria autorizar o uso da mão de obra dos alunos.
Quando o assunto chegou novamente ao gabinete do Ministro da Marinha, ele decidiu enviar a proposta à Inspetoria de Engenharia para avaliação. Acredito que os engenheiros se irritaram por eu ter dito que não haveria órgão técnico habilitado para avaliar o assunto e decidiram negar a continuidade do projeto. Apontaram falta de precisão, mas não quiseram rediscutir os cálculos ou fazer novas propostas.
Na sua opinião, faltou apoio do governo brasileiro ao desenvolvimento da tecnologia nacional?
Sim, em discurso que fiz na inauguração oficial da Sociedade Nacional “Confederação Aérea Brasileira”, mostrei que o Brasil teve pioneiros relevantes na aeronáutica, como Bartolomeu de Gusmão, que inventou o aeróstato, Júlio César, Augusto Severo e o glorioso Santos Dumont, mas, ainda assim, absolutamente nada estava sendo feito até aquele momento em prol da navegação aérea. Abro exceção para dois personagens que defenderam a aeronáutica do país, que foram o Barão de Tefé e o marechal Hermes da Fonseca.
Há quem o critique por ter se dedicado à aeronáutica, afinal, a sua formação é de médico e não de engenheiro ou matemático, como haveria de se supor. O que o senhor acha disso?
Não temo as críticas dos que acham estranho que um médico se aventure nestas questões. Acredito, afinal, que os profanos, como eu, inventam por intuição e os engenheiros depois fazem aquilo que lhes compete, isto é, aperfeiçoam.
Quando editei meu livro na Bélgica, tendo mandado imprimir 20 mil exemplares inteiramente às minhas custas, já tinha a convicção que mantive ao longo da minha vida: dentro de breve tempo, a navegação aérea não será mais um mito, será uma realidade pura e completa. E não se dirá mais dos que se dedicam com verdadeiro e estoico heroísmo a esta nova e futurística ciência, que eles são sonhadores ou semi-doidos…
[1] *Texto literário, baseado em trechos do livro Tratado de Aeronáutica e em pesquisa sobre a vida e obra de José Ribas Cadaval, nascido em 1863 e falecido em 1920.
[2]CADAVAL, JOSÉ RIBAS– Tratado de aeronáutica: Navegação Aérea, dos mais leves que o ar (dirigíveis) dos mais pesados que o ar (aeroplanos). Bélgica: Typ. Cl. Thibaut, 1911. 392 p.,. O autor era tio-avô de Mauricio Cadaval.