Artes & Artigos

por Maurício Cadaval

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O médico inventor de aviões

05/02/2017 by Mauricio Cadaval

Entrevista com José Ribas Cadaval[1]

“Dentro de pouco tempo, a navegação aérea não será mais um mito, será uma realidade pura e completa”, José Ribas Cadaval.

 

José Ribas Cadaval, médico, inventor e autor do livro Tratado de Aeronáutica[2], primeira obra de um brasileiro sobre o tema, publicada em 1913, viveu no auge da segunda Revolução Industrial. Era a época do surgimento de grandes invenções, como o avião e o navio a motor. Em poucos anos, o mundo assistiu a um desenvolvimento significativo das tecnologias para a indústria química, elétrica, de petróleo e do aço, com enormes consequências na economia e na vida da população.

Havia uma grande ebulição na área de ciência e tecnologia e as boas ideias se transformavam rapidamente em produtos, a maior parte deles voltados ao mundo militar. No curto período entre as duas grandes guerras mundiais, os países sabiam que a paz não seria duradoura. Quem estivesse mais preparado largaria na frente.

Imbuído pela filosofia em voga à época, o positivismo, e por uma grande dose de patriotismo, Cadaval buscava contribuir, com a publicação de seu Tratado, para o desenvolvimento de uma “aeronáutica militar” no Brasil, o que envolveria a fundação de uma escola e a criação de um arsenal de guerra, com a construção de dirigíveis e de outros aparelhos de navegação aérea.

Apenas sete anos antes, em 1906, Santos Dumont havia realizado o primeiro voo público de que se tem notícia, circulando a torre Eiffel a bordo do 14 Bis. A indústria aeronáutica, portanto, ainda não existia e o conhecimento científico e técnico sobre o tema estava em desenvolvimento.

Ribas Cadaval, apesar de não ser matemático ou engenheiro, estudou as teorias que havia até então e, com base nelas, inventou e conquistou a patente de um novo aparelho, o “aerostoplano”, um sistema híbrido entre um balão dirigível e um aeroplano.

Na entrevista* a seguir, questionamos Ribas Cadaval sobre detalhes de sua história, suas motivações e seus projetos.

Quando o senhor começou a se envolver com a aeronáutica?

Corria o ano de 1897 quando voei pela primeira vez. A bordo de um balão cativo, subi a 1000 metros acima do solo, marca significativa para a época. Eu tinha 34 anos e estava trabalhando como médico da Armada no navio cruzador-torpedeiro Tupy.  Quando surgiu a oportunidade de embarcar em um balão que fazia testes aéreos nas proximidades de Bruxelas, em companhia do aeronauta Baud Filho, não hesitei. Na longa viagem de volta da Europa para o Brasil a bordo do Tupy, me dediquei a idealizar o projeto de um balão dirigível. 

O que o motivou a estudar este tema?

Era claro para mim que o avanço da aeronáutica, muito mais do que satisfazer desejos inconscientes do ser humano, ligados às ideias de voo e liberdade, oferece um alto interesse prático à humanidade, que justifica todos os esforços e sacrifícios envolvidos no processo.

Quanto mais me envolvo com o tema, mais percebo que o Brasil precisa disso! Somos uma grande potência mundial e, apesar de não sermos um país conquistador, precisamos estar suficientemente aparelhados para garantir a defesa territorial e a soberania nacional. O que me encorajou neste caminho é, devo admitir, a vaidade do inventor, mas também o entusiasmo de patriota.

Em 1908, o senhor apresentou um protótipo de dois metros de uma aeronave a autoridades civis e militares, inclusive ao Marechal Hermes da Fonseca, Ministro da Guerra, e à imprensa. Como era este projeto?

Tratava-se de um balão, batizado de “Cruzador Aéreo Hermes”, que já trazia as origens da ideia que me deu destaque na aeronáutica: os planos de sustentação. Ou seja, ele foi projetado de tal forma que, se a força para subir faltasse, ainda assim a máquina seria capaz de planar, descendo demoradamente e evitando acidentes.

Como era uma máquina de uso militar, incluí como armas os torpedos-flecha e o “devastador incendiário”, substância que eu mesma inventei e que, depois de liberada, se espalhava queimando tudo que houvesse pelo caminho. Cada quilo da substância poderia se espalhar por uma área de 25 metros quadrados, com labaredas intensas e duradouras.

Hoje, no século XXI, as aeronaves voam a mais de 10 mil metros de altitude e a velocidades em torno de 900 quilômetros por hora. Comparativamente, como era o cruzador Hermes?

Bem, com a tecnologia disponível à época, previmos que ele seria movido por um motor de 60 cavalos e conteria 2,5 mil metros cúbicos de gás hidrogênio, podendo atingir 90 quilômetros por hora e cerca de 1000 metros de altitude. A aeronave seria feita de alumínio na metade inferior e seda na parte superior. Hoje, além do alumínio, se usam materiais sofisticados que não existiam à época, como fibras de vidro e de carbono.

O senhor chegou a aperfeiçoar este projeto. Como foi isto?

Alguns anos mais tarde, aprimorei a ideia inicial ao desenvolver o projeto de um “aerostoplano” – sistema misto que inventei, que utiliza a aerostação, ou seja, a construção de aparelhos mais leves do ar, como os balões, conjugada ao sistema dos aeroplanos, que precisam de um motor e um propulsor para voar,  já que são mais pesados que o ar.

Nesta época, o senhor estava totalmente dedicado à aeronáutica e chegou a realizar experiências em um túnel de vento na Suíça, tendo sido o primeiro brasileiro a trabalhar com este tipo de teste. Como foi este período e o quê mais o senhor desenvolveu por lá?

Bom, em 1909 eu pedi licença da Marinha para estudar eletroterapia e higiene naval na Europa e nos Estados Unidos. Estudei os dois temas, mas também aproveitei para aperfeiçoar meus conhecimentos aeronáuticos e, inclusive, cursei a Escola Superior de Aeronáutica de Paris.

Em 1911, obtive o primeiro sucesso: consegui a patente francesa para um “aeróstato planador dirigível”, ou seja, o aerostoplano, o que mostra que a minha invenção era viável e inédita.

Em 1912, montei um gabinete aerodinâmico para estudar a reação do ar sobre corpos em movimento em Teufen, na Suíça. Lá, construí um túnel de vento de 23 metros de comprimento e 3 metros de largura, que serviu para que eu testasse modelos reduzidos de aeronaves.

Quando voltei ao Brasil, pedi ao Ministro da Marinha, o contra-almirante Joaquim Marques Batista de Leão, autorização para construir na Escola Naval da Ilha das Enxadas o meu mais novo projeto: o Hidroplano Estável Cadaval.

E ele foi construído?

Infelizmente, não. O professor responsável pela escola, o capitão-de-corveta José Pinto da Motta Porto despachou meu pedido informando que as oficinas teriam condições técnicas para a construção do hidroplano, mas que ele não iria autorizar o uso da mão de obra dos alunos.

Quando o assunto chegou novamente ao gabinete do Ministro da Marinha, ele decidiu enviar a proposta à Inspetoria de Engenharia para avaliação. Acredito que os engenheiros se irritaram por eu ter dito que não haveria órgão técnico habilitado para avaliar o assunto e decidiram negar a continuidade do projeto. Apontaram falta de precisão, mas não quiseram rediscutir os cálculos ou fazer novas propostas.

Na sua opinião, faltou apoio do governo brasileiro ao desenvolvimento da tecnologia nacional?

Sim, em discurso que fiz na inauguração oficial da Sociedade Nacional “Confederação Aérea Brasileira”, mostrei que o Brasil teve pioneiros relevantes na aeronáutica, como Bartolomeu de Gusmão, que inventou o aeróstato, Júlio César, Augusto Severo e o glorioso Santos Dumont, mas, ainda assim, absolutamente nada estava sendo feito até aquele momento em prol da navegação aérea. Abro exceção para dois personagens que defenderam a aeronáutica do país, que foram o Barão de Tefé e o marechal Hermes da Fonseca.

Há quem o critique por ter se dedicado à aeronáutica, afinal, a sua formação é de médico e não de engenheiro ou matemático, como haveria de se supor. O que o senhor acha disso?

Não temo as críticas dos que acham estranho que um médico se aventure nestas questões. Acredito, afinal, que os profanos, como eu, inventam por intuição e os engenheiros depois fazem aquilo que lhes compete, isto é, aperfeiçoam.

Quando editei meu livro na Bélgica, tendo mandado imprimir 20 mil exemplares inteiramente às minhas custas, já tinha a convicção que mantive ao longo da minha vida: dentro de breve tempo, a navegação aérea não será mais um mito, será uma realidade pura e completa. E não se dirá mais dos que se dedicam com verdadeiro e estoico heroísmo a esta nova e futurística ciência, que eles são sonhadores ou semi-doidos…

[1] *Texto literário, baseado em trechos do livro Tratado de Aeronáutica e em pesquisa sobre a vida e obra de José Ribas Cadaval, nascido em 1863 e falecido em 1920.

[2]CADAVAL, JOSÉ RIBAS– Tratado de aeronáutica: Navegação Aérea, dos mais leves que o ar (dirigíveis) dos mais pesados que o ar (aeroplanos). Bélgica: Typ. Cl. Thibaut, 1911. 392 p.,. O autor era tio-avô de Mauricio Cadaval.

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Acidente de avião

05/02/2017 by Mauricio Cadaval

O céu de Lima está sempre encoberto por um espesso manto de nuvens brancas. Ao menos era sempre assim que eu via a cidade no tempo em que trabalhei por lá. E, no entanto, nunca chove. Quando o avião decola, durante alguns minutos desfilam pela janela as casas sem telhados e os tetos que servem apenas como depósitos para coisas empoeiradas. Mas logo a cidade desaparece e a névoa branca envolve o avião no seu caminho ascendente até que surge o azul e o sol da manhã brilha intensamente. Alguns minutos adiante, já na travessia dos Andes, surgem as grandes crateras de vulcões e os picos nevados.

O voo até São Paulo foi tranquilo e o sono veio fácil.

Num movimento lento e constante, uma fenda foi se abrindo no centro da cidade e os carros se jogavam dentro dela. Do meu quarto no oitavo andar do hotel eu via o enorme abismo se aproximar e não conseguia reagir, paralisado, aguardando o desfecho inevitável. O telefone tocou e alguém me dizia, num espanhol confuso, para não entrar no elevador e nem me atirar pela janela.

Acordei com a aeromoça informando que dentro de alguns minutos iniciaríamos nossa descida para o Aeroporto de Guarulhos. Tempo bom e temperatura de vinte graus.

Lembrei-me do que se passou na primeira semana de trabalho em Lima. Fui recebido como autoridade e logo acomodado num hotel de luxo em Miraflores. À noite, quando eu voltava para o que era então “a minha casa”, ficava extasiado com as luzes do bairro vistas pela janela do meu quarto no oitavo andar. O idílio durou pouco. Durante uma reunião num prédio do governo próximo ao Porto de Callao, um forte terremoto fez todos os funcionários descerem correndo pelas escadas e se postarem num pátio interno, assustados e ofegantes, eu mais do que eles. O edifício tinha apenas dois andares. Foi o meu primeiro terremoto e nunca esquecerei a terrível sensação de perder o apoio do chão e ver o prédio inteiro tremer em minha volta.

Custei a dormir naquela noite, imaginando como seria se houvesse um terremoto durante a minha permanência no hotel. No dia seguinte pela manhã fui ao escritório do meu contratante e chorei as pitangas para deixar o luxuoso hotel e alugar uma simples casa térrea, sem importar a localização. A contragosto, eles me deram autorização e rapidamente aluguei uma casa em que a minha cama ficava junto a uma porta de correr de vidro, a meio metro do jardim.

Alguns dias depois fui convidado para uma festa na coberturade um prédio de doze andares. A dona da casa, muito gentil, veio conversar comigo e, preocupado com a situação, não consegui evitar uma menção ao medo de terremotos. Ela procurou me tranquilizar dizendo que os terremotos são frequentes em Lima, mas, na maioria das vezes, não chegam a causar maiores danos. E contou-me que certa vez, quando foi a São Paulo, se deparou com uma daquelas terríveis tempestades que escurecem o céu no final da tarde, em meio a raios e trovões, e ficou aterrorizada. Como em Lima não chove, essa tempestade parecia para ela algo ameaçador e muito preocupante. O mesmo deveria estar acontecendo comigo em relação aos corriqueiros terremotos limenhos.

Em Guarulhos, depois de uma longa espera, embarquei num avião para Brasília com escala em Goiânia. Era um domingo, 16 de setembro de 2001. Mais tarde vim a saber que eu estava no voo 2240 da Varig e que a aeronave era um Boeing 737-200.

Em geral eu prefiro sentar na poltrona junto ao corredor. Naquele voo, com muitos assentos vazios, encostei-me à janela e passei quase todo o tempo olhando distraidamente a paisagem. Na chegada a Goiânia, chovia muito e as trepidações aumentaram, mas nada que abalasse a minha tranquilidade. Perto do solo, percebi que alguma coisa estava errada na aproximação da pista, um desvio anormal, alguma coisa assim.

O que aconteceu em seguida foi questão de segundos. Debaixo da forte tempestade, o avião tocou o solo fora da pista, houve um estrondo, ele inclinou-se para a direita (o lado em que eu estava) e arrastou-se por muitos metros até uma manobra súbita que o recolocou na pista novamente, mas, desta vez, sem o trem de pouso que havia se quebrado. Dentro, o pânico era total, as pessoas gritando, as bagagens voando e muita fumaça; alguns passageiros foram lançados para fora das poltronas e várias delas se deslocaram para o corredor. Pela janela, vi que a asa do avião havia se partido e o que sobrou dela se arrastava no chão. A enorme turbina saiu voando e foi parar a 300 metros da pista.

Dentro da pista, o avião literalmente se arrastou de lado por quase 600 metros. Apavorado, coloquei os pés no encosto da poltrona à minha frente, fechei os olhos e esperei pela morte que viria quando aquela enorme massa desgovernada explodisse ou se chocasse contra algum obstáculo. Tive a sensação mais vívida do fim que alguém pode ter. Para minha surpresa, o avião parou repentinamente e, ainda tonto, ouvi os gritos desesperados das aeromoças que, junto da porta aberta, alertavam os passageiros sobre o risco de explosão e os incitavam a sair correndo. Como sair correndo no meio de todos aqueles escombros, com a fumaça embaçando tudo e doendo nos olhos? Além de tudo, o avião estava muito inclinado para o lado em que eu estava e cai na primeira tentativa quando quis chegar ao corredor. Quase impotente, olhei pela janela e vi o combustível jorrando da asa quebrada. Acho que foi isso que me estimulou a tentar novamente.

Como o corredor estava cheio de gente tentando escapar da explosão iminente, tive a infeliz ideia de pegar uma sacola com duas garrafas de whisky que havia comprado no free shop de São Paulo e a pasta com o meu notebook, uma em cada mão. Quando consegui chegar ao escorregador inflável, o peso da carga me obrigou a descer de cabeça e assim atingir a pista. Acho que bati o recorde olímpico de agilidade para ficar em pé e de velocidade na corrida desesperada para me afastar o mais possível da aeronave. Já distante, vi que o avião não havia pegado fogo, talvez por causa da tempestade que caia, que sei eu? Alguns passageiros se feriram no acidente, mas nenhum gravemente.

Um fato me deixou intrigado até muito tempo depois. Durante o voo eu havia lido um artigo que julguei ser de interesse para a Rosana; recortei e guardei naquela bolsa em frente ao meu assento. No sufoco da evacuação, quando tudo indicava um alto risco de explosão, tive o impulso de voltar ao meu lugar e recuperar o recorte de jornal. Se não fiz isso foi porque, simplesmente, o aglomerado de pessoas não permitia. Pensei comigo mais tarde: talvez a situação de perigo tenha me deixado louco por alguns instantes, pois só um louco teria o ímpetode voltar para recuperar um pedaço de jornal.

Demorei meses para matar a charada. Em situações limites, a mente procura se defender do risco de extinção e gera um derivativo – ainda que absurdo como naquele caso – ou seja, uma espécie de negativa da ideia de morte. Não sei se estou certo, mas a explicação me satisfaz.

Por conta de um trabalho, voltei diversas vezes a Goiânia nos meses seguintes e, a cada vez, acompanhava o destino do avião acidentado. Ele foi arrastado até um local próximo ao desembarque de passageiros e ali ficou. Um funcionário da Varig me informou que a perda foi total e não havia como recuperar a aeronave. Aos poucos foram retirando o pouco que havia de aproveitável, até que sobrou apenas a carcaça. Um dia, quando voltei por lá, a carcaça havia sumido. Fiquei curioso com o destino que lhe foi dado, mas não tive tempo de perguntar no Aeroporto.

Tomei um taxi e segui na direção do centro. No meio do caminho, bem ao lado da avenida, lá estava a carcaça do fatídico avião transformada num bar, restaurante ou coisa parecida.

Hoje, muitos anos passados, restou o que guardei em minha memória, cada dia mais frágil.

 

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Desempenho escolar

05/02/2017 by Mauricio Cadaval

Tudo se passou em Belo Horizonte, de 1946 a 1964, num ambiente nada parecido com o de hoje. Isso me tranquiliza quando penso na possibilidade dos meus netos e bisnetos virem a ler esse relato nem sempre exemplar.

Jardim da Infância

Meu melhor desempenho escolar foi no jardim da infância da Escola Delfim Moreira, onde me formei com “ótimo aproveitamento”. E isso nada tem a ver – posso adiantar – com o fato de Dona Violeta Lott, minha professora, ser aparentada e amiga de meus pais. Eu era bom mesmo, principalmente no recorte de figurinhas com tesoura sem ponta e no canto orfeônico (canto em coral ensinado em algumas escolas naquela época). Eu me formei com oito anos porque faço aniversário em dezembro, mas nessa época já sabia escrever o meu nome e assinei meu diploma.

Grupo escolar

A partir daí o desempenho não foi tão bom, com algumas exceções. No Grupo Escolar D. Pedro II eu tinha uma queda toda especial pela professora (como todos os meus coleguinhas) e passei a acreditar que ela, percebendo isso, ajudava no boletim. Justiça seja feita: meu desempenho no teatrinho da escola foi brilhante quando representei D. Pedro I no Dia da Independência. Com a cabeleira de algodão branco e o uniforme de cetim verde que minha mãe fez, acho que emocionei a plateia na hora do Independência ou Morte.

No quarto ano do primário, como se dizia então, fui transferido para o Grupo Escolar Barão do Rio Branco. O único fato notável foi na formatura. Dona Irene Guimarães, a orientadora educacional, comentou na frente de todos os alunos da escola a minha redação de português, em que eu escrevi nescessárioao invés de necessário. A partir de então, procurei ser mais cuidadoso com a escrita. Puro pragmatismo que não se refletiu nas minhas notas de português. Às vezes achava que o meu bom desempenho tocando tambor na bandinha da escola, que desfilava no Sete de Setembro, me ajudou um pouco a passar de ano.

Ginásio e Científico

Fiz o ginásio no Colégio Dom Silvério, dos Irmãos Maristas. Na minha lembrança, as notas eram medianas. Quando consultei os boletins escolares que minha mãe guardou, fiquei surpreso ao ver que, com aquelas notas, eu ainda conseguia boas classificações. Entre meus alfarrábios, achei três certificados mensais de honra ao mérito por minha “aplicação e procedimento”, assinados pelo Irmão Ilídio Gabriel, o que não é muito considerando os quase 40 meses de duração do curso ginasial, mas prova que eu me esforcei.

Lembro-me bem de ter sido aprovado com louvor para ingressar na academia de letras do colégio, defendendo uma tese sobre Monteiro Lobato. Naquela época o autor de Reinações de Narizinho não era acusado de preconceito racial, mas de ser comunista e por isso minha tese foi uma ousadia, talvez uma temeridade.

Até aqui, embora o desempenho não fosse ótimo, eu passava de ano, às vezes com uma ou duas dependências (chamava-se segunda época) que me roubavam parte das férias. No primeiro científico o caldo entornou. Levei bomba em matemática, química e física e fui obrigado a repetir o ano. Diante desse resultado, os padres jesuítas do Colégio Loyola sugeriram delicadamente a meus pais que me transferissem para outro colégio, o que foi feito. Apesar do fracasso, eu tirava boas notas em desenho decorativo e o professor Gil Lemos sempre elogiava as minhas borboletas amarelas.

Fui para o Colégio Arnaldo, menos exigente e mais barato, onde atravessei os três anos do científico estudando pouco e sem reprovações. Lá comecei a atuar em política estudantil e fui eleito presidente do DACA – Diretório Acadêmico do Colégio Arnaldo. Logo passei a me relacionar com um grupo de colegas pouco afinados com os métodos dos padres alemães que dirigiam a escola. Um dos companheiros mais chegados era o Henriquinho que anos mais tarde se tornaria o cartunista Henfil. Entre outras iniciativas, montamos um cine clube no colégio, com o compromisso de não passar filmes “pornográficos”, categoria que na época se caracterizava pelas cenas de beijos prolongados. Como nem sempre era possível obedecer, os padres adotavam a estratégia de acender as luzes do auditório na hora dos beijos e amassos, com protestos veementes da plateia.

Nessa época (1958) colaborei para fundar a UEC – União dos Estudantes Católicos, entidade criada por inspiração dos donos de colégios religiosos “para combater os comunistas infiltrados na UMES – União Municipal dos Estudantes Secundaristas”. E andei simpatizando com o integralismo. Acho que essas adesões contribuíram para melhorar o meu conceito escolar junto aos padres da Congregação do Verbo Divino, que dirigia o Colégio Arnaldo. E assim rompi mais uma etapa da vida estudantil. Na formatura do terceiro científico recebi um cartucho vazio, pois havia ficado de segunda época em biologia, matéria em que jamais consegui decorar as classificações das espécies vegetais.

Lá pelo segundo científico, eu já havia desistido do integralismo e entrado na JEC – Juventude Estudantil Católica, que era vista como uma agremiação de esquerda, dirigida pelos freis dominicanos. Em pouco tempo me tornei membro da equipe de direção, um triunvirato que dirigia o movimento. Por extensão, passei a ter certa atividade de liderança no movimento estudantil de Belo Horizonte.

Faculdade

Era época de escolher um curso universitário. Eu oscilava entre arte e política; se fosse arte, eu tentaria arquitetura, se fosse política eu ingressaria em alguma faculdade de ciências humanas, como, por exemplo, sociologia (eu não fazia a mínima ideia do que se ensinava lá). Optei por esta última, pensando em me capacitar para fazer a revolução social.

A escolha não foi fácil. Desde criança, fui estimulado a me dedicar à pintura artística por duas figuras que sempre tive em alta conta. Titia, como chamávamos minha tia-avó Delfina Palhano, que pintava paisagens e naturezas mortas e guardava os meus desenhos dentro do seu oratório, e meu pai (Luiz Palhano Cadaval), um ótimo desenhista que me levou, ainda adolescente, para a Escola do Guignard. Em plena crise de adolescência, eu temia que a arte me fizesse gay como vários artistas; achei que o Curso de Sociologia, além de me preparar para a revolução, me tiraria daquele “mau caminho”.

O interesse pelas artes plásticas me rendeu dois empregos. Um deles, o primeiro que tive na vida, foi aos 14 anos, na empresa de engenharia em que meu pai trabalhava. Por algum tempo, fui desenhista-aprendiz de instalações elétricas e hidráulicas. Depois, durante mais de seis anos, trabalhei como desenhista no Banco da Lavoura de Minas Gerais, preparando material audiovisual para treinamento dos bancários.

Não sei bem como passei no vestibular da Faculdade de Ciências Econômicas, onde estava o Curso de Sociologia em 1960. Li apenas dois livros e até hoje não sei se os entendi muito bem: Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, e Formação Política do Brasil, de Caio Prado Junior. Pensando bem, os candidatos eram poucos e alguma osmose resolveria tudo (para os estudantes da época, osmose era absorver conhecimentos andando com os livros debaixo do braço).

Na Faculdade eu estudava pouco, mas nunca repeti um ano e, curiosamente, era considerado um bom aluno, ao menos pelos meus colegas. A verdade é que a política estudantil e sindical não deixava muito tempo para os livros e o aprendizado se restringia a ouvir as aulas matutinas. Além de participar ativamente do Diretório Acadêmico da Faculdade, da JUC – Juventude Estudantil Católica e, mais tarde, da AP – Ação Popular, um movimento da esquerda católica, eu trabalhava no Banco da Lavoura de Minas Gerais no período da tarde, atuava no sindicato dos bancários e à noite fazia bicos numa empresa de audiovisual que criei com dois colegas. Viajava pelo interior de Minas, quase sempre em missões políticas, frequentava os bares da juventude, como o Bucheco, e namorava nas horas vagas, quando havia. A vida doméstica consistia em dormir e discutir com meus pais sobre minhas ideias políticas, das quais eles discordavam radicalmente.

No dia primeiro de abril de 1964, quando eu estava no último ano do curso, minha casa amanheceu cercada por soldados do Exército armados com metralhadoras. Vieram me prender. Quando sai da prisão fui informado que eu havia sido demitido do emprego por causa de minhas atividades subversivas. Aos trancos e barrancos, traumatizado e respondendo a dois inquéritos policiais militares, consegui me formar na Faculdade com a ajuda de alguns professores e colegas. Decididamente, os militares não estavam preocupados com o meu desempenho escolar.

Hoje, olhando pelo retrovisor, acho que a escola formal me deu alguns conhecimentos básicos que foram úteis durante toda a minha vida. Aprendi a ler e a escrever, sei algumas operações de aritmética, decorei a tabuada e outras coisas importantes.

Num outro plano, o que a escola formal me ensinou de mais importante foi aprender a aprender. Em outras palavras, método de aprendizado. Entre outras coisas, descobri – a duras penas – como obter conhecimentos específicos, como encontrar e consultar fontes quando necessário. Alguns chamam isso de “metodologia científica”, nome que acho pomposo e impreciso para operações às vezes tão simples como consultar um dicionário ou esquematizar um relatório. Os conteúdos, estes eu aprendi mesmo fora da escola, alguns extraídos meio a fórceps, outros tranquilamente na vida cotidiana, junto aos parentes, amigos e colegas de trabalho.

Pensando bem, o meu desempenho escolar não foi tão ruim quanto eu às vezes imagino.

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Desenhos de Juventude

05/02/2017 by Mauricio Cadaval

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A caminho de Sintra

05/02/2017 by Mauricio Cadaval

Em estado de graça. É assim que nos sentíamos naquela manhã fresca e ensolarada, depois de uma visita ao Palácio de Queluz. O próximo destino era um pouco distante e o rumo ainda desconhecido. Sem problema. Basta procurar pelo caminho no GPS do carro. Qual é a cidade? Sintra. Nome do logradouro? Parque Nacional de Sintra. Qual é o número?… Número?… Decididamente, não sei qual é o número do Parque Nacional de Sintra. Muito simples. Tenho um bom senso de direção e, com a ajuda das placas de trânsito, não preciso do GPS.

Depois de muitas ruas e rotundas, chego à conclusão que estamos completamente perdidos. É melhor parar e pedir ajuda. Paramos em frente ao Bar da Maria.

É uma construção simples. Na frente há um pequeno pátio em aclive com uma rampa em ziguezague e, ao lado dela, patamares com meia dúzia de mesas rústicas de madeira, todas ocupadas, cada uma por dois ou três homens. Ao todo eram uns dez, sentados e em completo silêncio. Quando comecei a subir a rampa, todos se voltaram para mim. Custava-me acreditar que fossem reais. Eram jovens, de aparência rude, vestidos de maneira simples. Ocorreu-me a imagem de caminhoneiros cansados. A princípio senti um ambiente agressivo e tive medo. A luz descontraída da manhã me acalmou e continuei a subir até o pequeno cômodo, procurando pela Maria do bar.

Por trás do balcão, quem me atendeu foi um jovem de seus trinta anos, ativo, bem diferente dos letárgicos fregueses. Logo se dispôs a me ajudar e disse que poderia programar o GPS para levar-me ao Parque. De pé, pôs-se a procurar caminhos e a digitar instruções. Eu observava esperançoso. Enquanto isso, todos os fregueses se levantaram das mesas e, como zumbis, foram lentamente se aproximando. Postaram-se em frente ao balcão, observando atentamente os movimentos do jovem. A cena me intrigou e, mais do que isso, me incomodou. Supondo, ingenuamente, que todos aqueles fregueses queriam pedir alguma coisa ou – quem sabe? – pagar a conta, sugeri ao jovem que os atendesse; eu não tinha pressa e poderia esperar. Tudo que recebi como resposta foi um “não se preocupe”.

Terminada a programação, agradeci e me senti na obrigação de pedir um café para mim e outro para Rosana que, a essa altura, preocupada com a demora, saíra do carro e se sentara por perto. Só então um dos fregueses rompeu o silêncio e, dirigindo-se a mim, disse algumas palavras que não compreendi. Respondi com um sim lacônico. Ele continuou dizendo coisas incompreensíveis enquanto os outros fregueses vieram aos poucos se aglomerar, silenciosos e atentos, em torno de nós. Assustado, peguei Rosana pela mão e, literalmente, fugimos para o carro.

Dei partida e ouvimos aliviados as instruções que Catarina, a nossa guia portuguesa do GPS, nos passava. Cinquenta metros à frente passamos por um hospital psiquiátrico.

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