Artes & Artigos

por Maurício Cadaval

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Rimbaud

04/02/2017 by Mauricio Cadaval

Estou lendo “Rimbaud”, uma biografia do poeta francês, por Edmund White (Cia. das Letras, 2010). Rimbaud foi uma figura emblemática de minha adolescência. Ele me fascinava pela sua revolta contra os valores tradicionais da sociedade francesa no final do século XIX e por seu espírito libertário. Edmundo White afirma, logo nas primeiras páginas do livro, que sua identificação com o poeta, também na adolescência, estava ligada aos “desejos de ser livre, de ser publicado, de fazer sexo, de ir para Paris”. E completa: “Só me falta a coragem dele. E o gênio.”

Minha fascinação passava também pelo desejo de ser livre e de ir para Paris, o que só muito mais tarde vim a realizar. Mas, o principal era o espírito de revolta contra as amarras – mais no plano simbólico do que real – da família e da sociedade. A dificuldade era conciliar esses sentimentos com a minha profunda adesão religiosa. Na época eu era católico e dava os primeiros passos na direção que me levariam, mais tarde, ao ativismo político num movimento de esquerda.

Ainda guardo comigo o envelhecido livro de Daniel-Rops, “Rimbaud – Le dramespirituel” (Rimbaud – O drama espiritual), onde o autor procura mostrar que o poeta, por baixo de toda a sua devassidão e amoralidade, soube se engajar no único combate que vale a pena para o cristão, o combate espiritual, tão brutal como a batalha dos homens. Hoje tenho sérias dúvidas sobre esse argumento, mas, na época, ele me parecia a única ponte possível entre o cristianismo e um jovem poeta que, gratuitamente, pichava as paredes de sua provinciana Charleville com um ”Merde a Dieu”.

O que eu admirava em Rimbaud era menos a sua obra do que a sua figura humana ou o que se dizia a respeito dela. Da obra, conheço apenas “Iluminações” e “Uma temporada no Inferno”, ambos na excelente tradução de Lêdo Ivo (Ed. Civilização Brasileira, 1957). Li várias vezes, embevecido, mas entendia pouco, acho que nem mesmo apreciava todo o seu valor literário. Algumas passagens ficaram marcadas, entre elas a sua tentativa desesperada de criar uma nova linguagem, atribuindo, por exemplo, cores à vogais, e, diante do fracasso, a proposta do silêncio definitivo (Rimbaud parou de escrever aos dezenove anos e foi ser comerciante de armas na África).

Hoje eu me indago sobre os focos da rebeldia adolescente, tão importante na formação do ser humano. Tento descobrir no comportamentoda juventude – roupas, tatuagens, grunhidos e preferências musicais – traços da rebeldia. Não consigo, pois o tempo que me separa da gente jovem é grande, mas desconfio que ela ainda exista, talvezassumindo novas formas. Certamente não é mais a rejeição à sociedade de consumo dos anos 60 e 70. Também não se manifesta no engajamento político, traço de uma minoria que ainda cultiva os esmaecidos valores de esquerda e direita. Outra possibilidade, o conflito de gerações, parece estar no seu ponto mínimo: não são poucos os jovens ainda moram com os pais até os trinta, quarenta anos ou mais.

Sem entender as coisas, eu passo.

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Pequenas histórias da Holanda

04/02/2017 by Mauricio Cadaval

COMO SE CHAMA A HOLANDA

Precisei ir à Holanda pela terceira vez para descobrir que aquele pequeno, rico e encantador país não se chama Holanda, mas sim Nederland, que pode ser traduzido para País Baixo em português ou Netherlands em inglês. Holanda é uma província de Nederland. Chamar o país de Holanda corresponderia a chamar o Brasil de São Paulo ou Minas Gerais. A língua oficial do País Baixo é o dutch, mas todo mundo lá fala e entende o inglês, considerado uma segunda língua.

Quem me explicou tudo isso foram a Roberta e o Koen, que estavam montando apartamento em Rotterdam e me receberam com muito carinho.

NIEMEYER NO ÔNIBUS

O ônibus 108 faz a ligação entre a cidadezinha de Ede e uma área próxima ao Parque Nacional HogeVeluwe, meu destino naquela manhã. O motorista é o sr.Kayan, que fala fluentemente quatro idiomas: o árabe e o francês porque nasceu e cresceu na Argélia; o dutch e o inglês porque vive há muito tempo na Holanda. Gosta de conversar e pergunta de onde sou. Tem boas referências de Brasília e sabe tudo sobre Niemeyer. Comento que muitos arquitetos brasileiros não gostam das obras dele. “É um artista, senhor, um artista e não um arquiteto comum”. Bonjour, MonsieurKayan.

MUSEU DA HEINEKEN

Gosto muito da cerveja Heineken e sou muito curioso sobre o processo de fabricação de cervejas em geral. Por isso resolvi dar uma olhada no Museu Heineken, instalado no prédio onde funcionou a primeira fábrica da cerveja em Amsterdã. Na bilheteria me informaram que o ingresso custa 18 euros. Nos museus de arte de primeiríssima qualidade, como o Rijks e o Van Gogh, a entrada custa de 10 a 16 euros e, no Brasil, posso comprar 10 longnecks bem geladas por esse mesmo preço. Achei um absurdo uma multinacional cobrar esse valor para entrar num espaço que – convenhamos – foi montado para o marketing dela mesma. Desisti da visita.

Enquanto eu saía, um casal de brasileiros com dois filhos na faixa dos 18 anos estava enchendo a cesta com produtos de promoção da Heineken, vendidos a preços nada convidativos. Apressei o passo e fui embora.

HOTEL CONTAINER

O que você faria se tivesse que chegar ao aeroporto às 4 horas da manhã? Foi a pergunta que me fiz em Amsterdã. Pela primeira vez e um pouco movido pela curiosidade, eu me hospedei num hotel dentro do aeroporto, desses do tipo container, muito ao gosto dos japoneses.  São dezenas, talvez centenas, de cubículos minúsculos de plástico, muito bem equipados, com banheiro, televisão, wi-fi e tudo mais, hermeticamente fechados e climatizados, sem janelas. Não recomendo para claustrofóbicos.

O hotel fica depois da área de controle de passaportes, mas antes do controle de segurança; há dezenas de free-shops à sua disposição, mas, como você ainda não tem cartão de embarque, só pode ver as mercadorias e não comprar. Não recomendo para os viciados em compras.

Para que você não se sinta um total prisioneiro dentro da cela, sem opções, há um pequeno quadro de controle da temperatura e da intensidade da luz. Por esse quadro, descobri que há luz especializada para ler, dormir, tomar banho, escrever e… para transar. Transar como, se mal cabe uma pessoa ali dentro? Com tudo tão pequeno e apertado é de se supor que o preço fosse pequeno. Não é.  A diária fica em torno de 53 euros. Mas, tem uma vantagem: eles só aceitam reserva para um pernoite. E quem aguentaria mais?

 

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Origens da Família Cadaval

04/02/2017 by Mauricio Cadaval

Não é de hoje que circula entre alguns parentes a versão de que o sobrenome Cadaval estaria ligado à linhagem dos Duques de Cadaval, de Portugal. Essa versão foi reforçada quando Luiz recebeu a carta de um desses nobres portugueses pedindo informações sobre as origens da família no Brasil (e nunca respondeu). A verdade é que ninguém tinha essas informações e os Cadaval brasileiros continuaram sem direito a um título nobiliárquico e a uma quinta no interior de Portugal…

Mitos como esse surgem quando a nossa curiosidade natural em relação às origens não encontra resposta no conhecimento objetivo dos fatos. O mito, não é tanto uma mentira coletiva, mas sim o esforço para entender o passado, incitando as pessoas a ultrapassar seus próprios limites e elevar-se para os modelos sociais, religiosos etc. O que eu me pergunto sempre é porque algumas pessoas da família elegeram como “modelo” essa estrutura arcaica da nobreza… 

Para ser sincero, sempre duvidei dessa origem nobre. Cadaval, em Portugal, é a designação de um título nobiliárquico antigo e não um sobrenome de família. O nome do primeiro Duque de Cadaval, que viveu no século XVII, era D. Nuno Caetano Alvarez Pereira de Melo. Atualmente, quem tem o título é uma mulher, a 11a. Duquesa de Cadaval, nascida em 1978 e que se chama Diana Mariana Vitória Álvares Pereira de Melo. Escritora com três livros publicados,dizem ser também uma excelente empresária que administra as propriedades da família em Évora e outras localidades de Portugal. Casou-se com um nobre francês e tem uma filha.

Em 2007, incomodado com a ignorância sobre o passado de nossa família, mas sabendo que o meu avô nasceu na cidade do Rio Grande, contratei um especialista de Porto Alegre para fazer uma pesquisa nos inventários da família Cadaval existentes no Rio Grande do Sul. O que vem a seguir é, em parte, resultado desses levantamentos.

 

Anastácio Francisco desembarcou no Porto de Recife, no final do século XVIII, com a intenção de começar vida nova na colônia. Vinha de Portugal e, ao que parece, deixou lá os seus filhos do primeiro casamento (Antônio José das Mercês, Gertrude Maria, Bernardina Maria das Mercês e Lourenço Francisco). O sobrenome Cadaval veio, provavelmente, dolugar onde nasceu. Por muito tempo, em Portugal, a maioria das pessoas simples não era registrada com um sobrenome e se identificavam ora pelo lugar onde nasceu, ora pela profissão ou outra característica.Assim Anastácio Francisco poderia ser conhecido por sua proveniência, ou seja,de Cadaval. O problema é que tampouco os nomes dos lugares permaneceram constantes ao longo dos anos. A pequena cidade de Cadaval, que hoje existe próxima de Caldas da Rainha, pode ter tido outra denominação no passado e outra localidade ou região é que se chamava Cadaval. Ou seja, tudo é muito impreciso e, para conhecer melhor as origens de um antepassado é preciso muita pesquisa.Nada se sabe também sobre sua profissão e condição social, mas, na época, eram quase sempre as pessoas pobres que emigravam, à procura de melhores condições de vida no Novo Mundo.

Em Pernambuco, Anastacio Francisco conheceu Anna Joaquina dos Anjos, com quem se casou pela segunda vez. Com ela teve quatro filhos: João Anastácio Cadaval, José Anastácio Cadaval, Senhorinha Joaquina e Caetana Maria de São José. Por algum motivo, a família mudou-se para a Cidade de Rio Grande, na então Província do Rio Grande do Sul. Foi láque morreram Anastácio Francisco, em 1823, e Anna Joaquina dos Anjos, seis anos mais tarde.

A linha de descendência que veio dar no meu pai (Luiz Palhano Cadaval) partiu de Caetana Maria de São José. Não se sabe se em Pernambuco ou já no Rio Grande, ela casou-se com Manoel Antônio de Carvalho. É certo que teve um filho, chamado Luiz Anastácio Cadaval. O curioso é que, nos inventários, Luiz Anastácio Cadaval aparece como filho natural de Caetana e pai incógnito. Aí vale qualquer especulação.

Foi na Cidade do Rio Grande que Luiz Anastácio cresceu, prosperou e constituiu a sua extensa família. Em meados do século XIX, Rio Grande era uma importante cidade portuária, por onde passava grande parte do movimento comercial com as outras províncias do Brasil. O comércio era principalmente de charque, o principal produto da região, essencial na alimentação dos escravos em todo o Brasil. Meu bisavô viveu em Rio Grande na época da Revolução Farroupilha e é provável que, como a maioria dos comerciantes locais, fosse partidário dos monarquistas (legalistas) e contra a emancipação política da província. Aliás, os habitantes de Rio Grande, assim como os de Porto Alegre e Pelotas, na época as principais cidades do Rio Grande do Sul, nunca aderiram, em sua totalidade, ao movimento republicano.

Luiz Anastácio, meu bisavô, era um homem abastado, considerando a época e o lugar onde morava. Quando morreu, em 1888, era proprietário de cerca de 30 casas e credor de inúmeras pessoas. Naquela época, não havia um sistema bancário desenvolvido e os empréstimos eram feitos pelas pessoas de maiores posses, sobretudo os comerciantes. Seu inventário, em 1889, registrou um saldo acumulado de quase cem contos de reis, dos quais cerca de sessenta e cinco eram as então chamadas dívidas ativas, ou sejam valores que lhe eram devidos por várias pessoas.

Ele se casou duas vezes: a primeira com Maria Silvana Cadaval, em 1841, e a segunda com Josefa Rodrigues, em 1847, natural de Pelotas. Teve 10 filhos: Arthur Luiz, José Ribas, João Bento, Luiz, Regina, Urbano, Alípio, Pedro, Enéas Gustavo e Octavio Brasileiro.

Meu avô Luiz, cujo nome completo era Luiz de Azevedo Cadaval (não se sabe de onde veio o sobrenome Azevedo), assim como José Ribas e Enéas Gustavo, era oficiais da Marinha e moravam no Rio de Janeiro. É provável que, por influência deles, toda a família tenha se mudado de Rio Grande para a Capital do País, onde Luiz Anastácio e Josefa faleceram no final do século XIX.

Em Porto Alegre permaneceu apenas Arthur Luiz, o filho mais velho, nascido em 1852, que se formou em Direito, foi Promotor Público e Deputado na Província do Rio Grande do Sul entre 1883 e 1886.

Luiz de Azevedo Cadaval nasceu na cidade de Rio Grande (RS) em 1855. Entrou para a Marinha com 16 anos e aí permaneceu por 41 anos, reformando-se como Almirante pouco antes de falecer em 1912. Como é normal na carreira militar, morou em muitas cidades, entre elas Vitória, Manaus, Belém, Recife e São Luiz, mas sua residência permanente era no Rio de Janeiro. Luiz conheceu Izabel de Carvalho Palhano, minha avó, em Belém, onde ela – que nesta época residia em São Luiz – foi visitar uma prima. Casaram-se em 1895, quando Luiz tinha 40 anos e Izabel 19.No ano seguinte o casal fixou residência em Belém onde nasceram Laide e Zilda, falecidas ainda crianças, e Syr, meu único tio na linha paterna. Em 1903 mudaram-se para São Luiz, no Maranhão, e foi lá que nasceu LuizPalhano Cadaval, meu pai, em 1904.

De volta com a família ao Rio de Janeiro em 1905, meu avô veio a falecer sete anos mais tarde, atropelado por um bonde, aos 57 anos de idade. Deprimida com a morte do marido, Izabel, minha avó, aceitou o convite para passear em Belo Horizonte, feito por sua irmã mais velha que estava passando uma temporada na nova capital de Minas Gerais. Gostou tanto que resolveu se mudar para a cidade com seus dois filhos, Luiz de 8 anos e Syr de 14. Syr não teve filhos e Luiz casou-se com Diva abrindo uma nova página para a família.

 

Como se vê, é bem possível que a origem de nossa família Cadaval seja muito semelhante a de outras famílias brasileiras, lançando suas raízes em gente simples de alguma pequena vila de Portugal. Por enquanto, não há qualquer sinal de nobreza. Aliás, a residência principal dos duques de Cadaval não está na vila que deu nome à linhagem, mas num palácio em Évora.

O palácio foi fundado no século XIV sobre as ruinas de um castelo mouro e desde então pertence à família Cadaval da nobreza portuguesa. Ao lado fica a igreja de São João Evangelista, com uma bela coleção de azulejos do século XVIII. O interior é um museu aberto à visitação, onde se encontram peças históricas e artísticas muito bem conservadas. Vale a pena ser visitado.

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Marrakesh

04/02/2017 by Mauricio Cadaval

CHEGADA

Depois de uma longa e cansativa viagem, partindo de Granada e passando por Málaga e Casablanca, cheguei às 10 da noite ao Aeroporto de Marrakesh, onde me esperava o motorista de táxi que eu havia contratado. Carro novo, largas avenidas com trânsito livre. Tudo perfeito.

A certa altura o motorista para o carro numa pequena praça escura e barulhenta, atulhada de gente e de motos, e, sem nada explicar, tira a minha valise do porta-malas e entrega a um carregador que a joga num carrinho de mão imundo. Só então me diz que, a partir daquele ponto, os automóveis não podem passar e eu devo ir a pé, acompanhando o carregador. Sem opção, vou seguindo pelo labirinto da Medina, a imensa cidade antiga de Marrakesh. Na semiescuridão, vejo que meu guia veste uma túnica (caftan) e um turbante brancos.Descalço, ele anda apressado sem me dar a mínima atenção. Tenho a sensação de ter sido sequestrado, mas não há como fugir. Lá pelas tantas, entramos numa ruela escura de um metro e meio de largura. O piso é de tábuas que balançam e, ao olhar para baixo, entre elas, percebo que estamos sobre um buraco profundo. Finalmente, o carregador para na frente de uma porta de madeira escura, única peça numa parede alta e lisa sem janelas ou saliências, e toca a campainha.

Eric e Didier, os franceses proprietários do Riad onde vou me hospedar, me recebem com o melhor dos sorrisos. Estou quase em pânico e eles tentam me acalmar. Depois do jantar, percebo que, por vias tortas, cheguei ao paraíso ou, melhor dizendo, a um oásis dentro da Medina.

O RIAD

Os riads de Marrakesh são antigas mansões, muitas delas hoje usadas como hotéis ou restaurantes. O termo significa “jardim fechado”. Têm, em geral, dois ou três andares e os poucos quartos se voltam para um vão central quadrado, onde no térreo se encontra o jardim. Quase não têm janelas dando para o exterior e, por isso, quem passa na rua não consegue identificá-los. O riadHoudou, onde fiquei, tem um belo jardim e, em torno dele, salas com decoração marroquina de muito bom gosto. No centro um pequeno chafariz. O contraste do espaço interno tranquilo com os becos agitados e barulhentos da Medina é total.

Os proprietários fazem questão de apresentar os hóspedes uns para os outros. Eles se encontram no café da manhã e à noite, quando há sempre um requintado jantar marroquino, às vezes com a presença de um cantor local.

As tábuas que forram o beco em frente ao riadHoudou são, na realidade, proteção sobre as valas abertas para reforma da rede de esgotos que, segundo os proprietários, nunca termina.

 

LABIRINTO

A Medina de Marrakesh e seus mercados (souks) nada têm de romântico. É um emaranhado de becos que formam um verdadeiro labirinto. Neles circulam pedestres, motos, bicicletas, carroças puxadas por jegues, carregadores empurrando carrinhos de mão e o que mais se possa imaginar, de tal maneira que caminhar distraídono centro das vielas é um perigo real.

Eu me perdia com frequência e precisava pedir informações, o que pode atrair os chatíssimos falsos guias, sempre prontos a “prestar serviços” por alguns dhrams (moeda local).

Tirar fotos na rua é um perigo se alguém suspeitar que está no foco da câmera. A maioria dos marroquinos não gosta de ser fotografado e alguns não se importam desde que sejam remunerados.

Dizem que não há violência do tipo assalto, sequestro ou assassinato (um amigo ouviu dizer que o rei mandou cortar algumas mãos, o que restringiu a violência). Em compensação, rouba-se abertamente no comércio. O primeiro preço de qualquer mercadoria ou serviço para turista é quase sempre o dobro do que o comerciante está disposto a receber, o que pressupõe negociações e acordos a cada esquina (o que eu detesto).

Nunca vi tantos ateliers e lojas de artesanato de boa qualidade. Serralheria artística, peças em gesso, madeira, cerâmica, couro, joias etc. Pena que não sou do tipo comprador…

A Medina é toda cercada por muralhas e, junto a elas, alguns jardins. Fora da Medina, a cidade tem vias e prédios modernos, estes quase todos de seis andares e de cor “telha”, mas, com uma ou outra exceção, nada que possa interessar.

CULTURAS DIFERENTES

Já viajei por muitos lugares com costumes estranhos, mas Marrakesh está no topo da lista. Nunca se sabe a real intenção de quem o aborda na rua. A vida religiosa está mesclada com o cotidiano. Um cantor que dava um show no riad em que me hospedei, por exemplo, interrompia a música na hora em que as mesquitas irradiavam as orações (são cinco orações por dia). Bebidas alcóolicas são proibidas nos bares e restaurantes. Os conceitos de higiene são diferentes.

Os berberes são os habitantes originais do Marrocos e ainda hoje representam quase metade da população, mas a sua língua não pôde ser ensinada nas escolas por centenas de anos, só o árabe. O acesso às mesquitas é proibido para os não muçulmanos.Ao que parece, isso foi uma norma imposta pelos colonizadores franceses para evitar conflitos religiosos.

Os códigos são bem diferentes, o que cria um pouco de tensão na vida do visitante. Acho que esses incômodos devem diminuir à medida que se aumente o tempo de estadia. Ou, para os que preferem (não é o meu caso) viajar em excursões, com guias e bandeirinhas.MONUMENTOS

Há monumentos muito interessantes em Marrakesh. Um deles é o JardinMajorelle, criado em 1922 pelo pintor francês Jacques Majorelle e, depois de sua morte, comprado e restaurado pelo estilista Yves Saint-Laurent que foi enterrado lá. Outro que me emocionou bastante foi a medersa Ben Youssef, um antigo seminário islâmico, hoje desativado, que, em certos aspectos da decoração, rivaliza com o maravilhoso Alhambra, de Granada.

Lamentei não ter estudado a arte islâmica antes de ir ao Marrocos. Ajuda muito a apreciar as coisas bonitas de lá. Ainda assim, não me arrependo dos momentos agradáveis que desperdicei no riad, debaixo das laranjeiras, tomando uma boa cerveja (lá dentro é permitido), fugindo do calor de 35 graus e estudando um pouco sobre o tema.

OS HAMAMS

Os hamans são casas de banho a vapor (saunas) usados para os rituais de purificação e constituem um elemento essencial de todas as cidades islâmicas. Funcionam também como lugares de lazer e encontros sociais. Em Marrakesh há hamansseparados para homens e para mulheres. Perto do riad em que eu estava hospedado havia um e fiquei tentado a visitá-lo mas não quis encarar a possibilidade de ser rejeitadopor ser turista.

Um dia, pouco antes do jantar, fui convidado pelo rapaz berbere que trabalhava no riad para “buscar a carne de carneiro que estava sendo cozida no subterrâneo do hamam”. Mesmo sem entender muito bem do que se tratava, aceitei o convite.

Entramos pelo estreito corredor existente entre os hamans masculino e feminino, descemos por uma escada estreita e chegamos numa grande caverna, escavada na terra, onde o calor era terrível. Era ali onde se aquecia a água e se produzia o vapor utilizado nos hamans, por meio de um enorme forno mantido sempre aceso. Um senhor idoso, responsável pelas operações, desceu a um fosso ainda mais profundo do que o nível onde estávamos e trouxe de lá um pote de cerâmica tampado com um pano.Sorridente, o entregou ao rapaz do riad. Além de produzir vapor para o hamam, a alta temperatura da caverna é usada para cozinhar, durante horas, as carnes trazidas por vários clientes. O senhor idoso mora ali mesmo, numa caverna bem ao lado do forno… Antes que as nossas próprias carnes assassem, voltamos ao riad para comer a deliciosa carne de carneiro.

TAJINES

Boa parte da culinária marroquina é feita em tajines. São recipientes de barro individuais, semelhantes a um prato fundo, cobertos com uma tampa em forma de cone. Do fogão ou forno, pelando, vão diretamente para a mesa. Tajine significa tanto o recipiente quanto o tipo de comida que nele se cozinha.

Os ingredientes são muito variados, incluindo carnes, sobretudo a de carneiro, diversos tipos de legumes e molhos deliciosos, muito condimentados. O cuscuz vem à parte e é quase obrigatório, substituindo o que seria o nosso arroz.

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Farrapos de tempos idos

04/02/2017 by Mauricio Cadaval

A vida na fazenda no final do século XIX

“Farrapos de Tempos Idos …”, de José Palhano de Jesus, foi finalizado em 1933, no Rio de Janeiro e impresso em 1950, quando o autor completava 75 anos[1]. Como sugere o título, conta histórias de uma época que se foi para não voltar. José Palhano de Jesus nasceu quando o Brasil era uma monarquia, passou pela abolição da escravatura, em 1888, e pouco depois pela proclamação da República. Apesar de tantas mudanças, do ponto de vista do menino que se apresenta na primeira parte do livro, a vida corria tranquila, recheada de histórias pitorescas e aventuras de criança.

O livro retrata o período em que o autor viveu na Mata Virgem, fazenda escravagista de algodão de propriedade do seu avô, localizada no interior do Maranhão, distante cerca de 80 quilômetros da cidade de Codó, à época uma pequena vila. Os costumes e as situações que compunham o jeito de viver de brancos e escravos na fazenda, entre 1880 e 1890, são apresentados ao leitor em detalhes.

O cotidiano e as impressões dascrianças aparecem em primeiro plano. Há muitas e divertidas histórias relacionadas aos brinquedos e brincadeiras da época, ao momento de alfabetização e às confusões que elas faziam ao absorver o conhecimento comum à época, pautado muito mais pela religião do que pela ciência.  Confusões que afetavam também os adultos, cercados por folclores, crendices e histórias de almas penadas e lobisomens.

José Palhano e seu irmão,Anísio, passaram a infância em longas explorações pela fazenda e suas imediações. Desde bem pequenos, com suas camisolinhas feitas pela mãe e sapatos talhados por um único sapateiro na vila de Codó, os dois passavam os dias em brincadeiras ao lado dos tios – também crianças à época – e dos “moleques e negrinhas”, como eram chamados os filhos dos escravos. Encontravam diversão em cada canto: nos currais, paióis, açudes, riachos e ranchos.

A mãe de Palhano é figura importante na narrativa: ao contrário das mães de hoje, ela não acompanhava de perto todas as aventuras – algumas até bem arriscadas – de seus filhos. Tendo se casado com apenas quinze anos com um “senhor” de 35, ficou viúva muito cedo, quando Palhano tinha apenas quatro anos e seu irmão seis. A partir daí, se dedicou a cuidar da administração da Casa Grande, de seus filhos e dos irmãos menores (já que a mãe dela estava debilitada após ter sofrido de tifo) e ainda costurava, à máquina, roupas simples que vendia aos escravos e agregados da fazenda. 

O principal produto da fazenda era o algodão, colhido por escravos que tinham a obrigação de trazer pelo menos três arrobas por dia, caso contrário eram açoitados. Palhano relata como assistiu várias vezes ao “degradante espetáculo” da pesagem do algodão, realizada no início da noite, em frente à varanda da casa. O menino viu, por exemplo, a confusão que se criou quando a velha escrava Otávia tentou esconder dentro do algodão umas duas ou três pedras para aumentar o peso e escapar da sova.

O trabalho dos negros era incessante, comandado pelo feitor branco (que por sinal era mulato), compadre Alfredo, e pelo feitor preto, chamado Ivo. O autor descreve como algumas escravas passavam o dia socando o arroz em um pilão, para separar a casca do grão. Ou como na “eira” de bater arroz e secar algodão – um grande pátio de terra socada, os escravos batiam cadenciadamente a planta com grandes paus, enquanto entoavam versos simples. Cantigas e versos faziam parte da rotina de todos, brancos e escravos, crianças e adultos.

Os meninos se misturavam ao trabalho da fazenda, se divertindo e também aprendendo. Uma das brincadeiras tinha como cenário o paiol onde era depositada a pluma do algodão. A farra era saltar por cima da pluma, para baixar o volume e permitir que uma quantidade maior fosse armazenada. “Nós, os meninos, nos oferecíamos para aquele serviço: ou melhor, para aquele agradável desporte, não raro em companhia de moleques e até negrinhas, estes e estas nus, segundo a moda deles até os 10 anos. E era um atirar-se de bruços sobre aquela tênue matéria que se comprimia deixando-nos inteiramente mergulhados num mundo branco e leve”.

Além do algodão, a fazenda era autossuficiente: plantava-se arroz, milho, fumo e outras culturas, criava-se gado, porcos e galinhas. Roupas, facas, enxadas, esteiras, balaios e vários outros objetos também eram produzidos ali. Meio na brincadeira, meio a sério, as crianças aprendiam atividades diversas típicas da fazenda, como o plantio e tratamento do fumo, o trabalho de ferreiro ou a construção de casas de taipa.

Só se obtinha da vila de Codó raros itens industrializados. Fazia sucesso, por exemplo, o presente que o avô trazia quando ia à vila: pães pequenos e ovais, “os únicos que ali se fabricavam”. Mesmo sendo já “pães dormidos”, agradavam à meninada por conta da novidade. O usual no café da manhã da fazenda era ter iguarias como bolo de tapioca, “bolo podre”, cuscuz, pamonha, macaxeira, abóbora (jerimum), beiju, entre outros.

 A rica produção da fazenda e as comidas preparadas com o que se plantava e colhia aparecem em vários trechos e chegam a dar água na boca no leitor. Como diz Palhano em certo trecho, era uma fartura “estupenda”. Ele descreve, por exemplo, as “sete maravilhas do mundo da cana de açúcar” obtidas no processo de refino do açúcar, que vão desde o rolete de cana até cascões e raspas que se formam nas paredes do tacho de cobre.

O mocotó era outro prato famoso.  Quando se matava um boi, chamavam-se os brancos das fazendas vizinhas para o banquete: havia o mocotó comum e o mocotó coberto (com ovos), ambos bem temperados com pimenta de cheiro. Para acompanhar, pirão, leitoa guisada, leitão assado, guisado de carneiro, lombo de porco, entre outros pratos. Palhano relata que, em um daqueles dias de festa, ouviu os adultos pedirem várias vezes: “passe a pimenta…”. Achando que era uma coisa essencial, pediu também. O desejo foi negado, mas ele tanto insistiu que o avô se irritou e despejou pimenta no prato da criança. “Daí por diante nunca mais quis saber de tão bárbaro tempero…”.

Ainda sobre o gado, o autor conta que o avô havia plantado, próximo à mata nativa, um vasto campo artificial. Ali se criava, além dos bois, porcos e carneiros, sendo estes últimos de alta qualidade, de raças que o fazendeiro procurava melhorar com a importação de espécimes ingleses. Do boi, tudo se aproveitava. Os meninos acompanhavam o espetáculo da matança do animal, realizado uma ou duas vezes por mês, e disputavam os despojos: a bexiga era o mais desejado pela criançada: “soprada, amarrada e batida no chão, ia-se distendendo até constituir um grande ovoide, translúcido e leve, que servia de peteca e de açoite”.

Entrando no tema das brincadeiras, uma das mais comuns era a criação de filhotes de passarinhos, como pombos, juritis, fogo-pagou, sangue-de-boi, entre outros, apanhados com o uso de arapucas. Para alimentá-los, utilizavam um processo que não seria muito bem visto pelas mães de hoje: imitando os pássaros, enchiam a própria boca de arroz cru e água e mergulhavam o bico do filhote ali dentro. Aparentemente, o sistema funcionava e os bichinhos sobreviviam. Já as andorinhas não tinham tanta sorte. Ao observar que elas não comiam grãos e que ficavam frequentemente pousadas nas bostas de cavalos e bois, concluíram os meninos que este seria seu alimento e insistiam em alimentar os filhotes com pequenas “pílulas” de excremento. Obviamente, eles rapidamente morriam.

Em certa ocasião, Palhano teve a sorte de encontrar um tucano, a quem criou com muito cuidado. As crianças também alimentavam filhotes órfãos de porcos, veados, antas, cotias, pacas, preás, raposas, catetus, queixadas, entre outros bichos. Além da distração proporcionada por essas criações, possuíam vários brinquedos, que eles mesmos construíam. Eram violinhas feitas com cabaça, elástico de botinas velhas, fios da cauda de cavalo e outros itens, carros de boi feitos de cabaça, reque-reques, papagaios de papel, armas de arremesso, zarabatanas, entre vários outros.

De vez em quando, o avô ou um dos jovens tios trazia da vila de Codó ou de São Luiz alguns brinquedos “de loja”. O retorno de viagem deles era esperado com impaciência pela meninada. Numa daquelas “memoráveis aberturas de mala”, Palhano viu surgiu um livrinho com figuras na capa. Aparentemente, o tio não tivera tempo de comprar brinquedos e deixou que o menino ficasse com o livro. Ainda sem saber ler, ele adorou o “presente” que descobriu, mais tarde, ser um simples catálogo de máquinas de costura.

Cantos e rezas eram frequentes e havia um verso para cada momento e necessidade. Palhano descreve, por exemplo, que quando as chuvas demoravam um pouco a chegar, organizava-se uma procissão que unia, “numa tocante fraternidade”, brancos e pretos, mulatos e cafuzos. Carregando os santos do oratório de “Mãe-Dondom”, a matriarca da fazenda, saiam pela fazenda até a beira da mata, espantando no caminho os jacus, macacos e periquitos. “Sendo as procissões realizadas no tempo próprio das chuvas, quando estas já não tardavam, não é de estranhar que o milagre se operasse às vezes ao apelo dos nossos cantos. E lá voltávamos, estrada afora, completamente ensopados…”.

A religião aparece em várias outras histórias. Em uma delas, Palhano com seus dez anos, empolgado com o catecismo, se esforça para achar um pecado para confessar, na véspera da primeira comunhão. Depois de muito pensar, resolveu relatar ao padre certo “incidente que, quando ocorrido, audível ou sensivelmente, junto dos outros, mesmo que por descuido, não deixava de provocar protestos”. A descrição fica clara em outro trecho: ele estava falando de gases. Obviamente, o padre se divertiu e o liberou do “pecado”.

Em outra passagem, Palhano conta que a reza dos “pretinhos” da fazenda era comandava pela Tia Eufrásia, que chamava o Pai Nosso de Oponosso e rezava assim: “venha a nós avó torreno”… E completa: torreno era o nome que se dava, no Codó, ao torresmo.

Ainda nesta linha, um dos causosdescreve uma noite em que, assustados com raios e trovões de uma tempestade, todos na casa grande se puseram a rezar juntos. A mãe de Palhano lia as frases que eram ecoadas em coro pelos demais. Em certo momento, a mãe interrompe a reza para dar um recado a alguém: “vai ver se Dondom está precisando de alguma coisa”. Ao que a que a criança repete, achando que ainda era parte do coro: “vai ver se Dondom está precisando de alguma coisa”. “Não é assim, meu filho”, replica a mãe e ele, incontinente: “não é assim meu filho”, provocando risos e acabando com a solenidade do momento. Para o menino, “para aplacar o padre eterno, com as suas furiosas barbas, bastavam as ininteligíveis palavras cabalísticas”.

O relacionamento das crianças com os adultos era bem diferente do de hoje em dia. Em um dos capítulos, Palhano conta de alguns merecidos “bolos” que levou, por conta de desobediências ou por falar palavrões. O respeito ao mais velho era exigido sempre, inclusive em relação aos escravos. Certa ocasião, Palhano e seu irmão brincavam na varanda por cima de um monte de algodão em caroço que havia sido espalhado ali para secar. O preto velho Benício, ex-feitor muito respeitado – “tão estimado que sentava-se à mesa dos brancos, coisa extraordinária naqueles tempos” – chamou a atenção das crianças. Palhano respondeu, sem intuito de ofender: “qual compadre! Você é preto!”. Benício levou o menino à mãe, que lhe aplicou um corretivo imediato.

Quando Palhano completou doze anos, sua mãe, na dificuldade de achar um professor ou um local em que ele pudesse continuar seus estudos, iniciados na casa de um padre em Codó, mandou o menino para a vila de Parnaíba, onde ele foi trabalhar como aprendiz na farmácia de seu tio Mundico. Lá, presenciou casoscomo o do “poeta” Joao Mandubé, que havia “cismado” de ser professor primário. Alguns dos nomes importantes da cidade, entre eles seu tio Mundico, resolveram formar uma banca para examinar o candidato. Em certo momento, perguntam a Mandubé quem era o poeta Fábio Everton. O rapaz entendeu mal a pergunta, mas não quis se fazer de vencido e respondeu: “sim senhor, Fábio é verbo”.

Na farmácia, Palhano também vivenciou as fraudes que ocorriam em nome do “interesse comercial”. Ele conta que viu seu tio fabricando uma pomada de mercúrio, remédio muito procurado à época. No processo de mistura, se adicionava “pó de sapato” para dar uma cor mais escura à pomada e diluir o custo, já que o mercúrio era caro. O aprendiz, ao ver o processo, passou a fazer a pomada apenas com o tal pó, sem uma grama de mercúrio, principal medicamento operante. “Nem me passava pela cabeça que aquilo era mal feito”, conta.

Entre tantas outras histórias, há descrição de várias festas da fazenda, como o Bumba meu Boi, o São João ou a Festa de Nossa Senhora da Conceição. Nesta última, realizada no final do ano, uma das atividades era uma roda de cantorias no meio da qual dançava sempre uma jovem, negra ou mulata.  Também ocorriam os “chorados”, espécie de quadrilha, da qual raramente os brancos tomavam parte.

Um dos momentos relatados no livro conta da chegada de ciganos à fazenda. Um grupo de aproximadamente 20 cavalos chega de surpresa numa manhã qualquer, trazendo homens, mulheres e crianças, e logo movimenta a rotina da fazenda. Os ciganos negociavam cavalos, liam as mãos, ou a “buenadicha” em troca de algum dinheiro – sempre com boas notícias para agradar ao ganjão (nome dado a quem não é cigano), e as crianças surrupiavam discretamente frangos e ovos.  Mas os moradores se davam por pagos com a quebra da rotina monótona da fazenda, admirando as vestimentas, costumes e jeito de falar diferentes e ouvindo as novidades que eles traziam.

O final da temporada de Palhano na fazenda coincide com o início da decadência da fazenda Mata Virgem, causado por problemas econômicos (a queda do preço do algodão) e precipitado pela doença do avô e pela abolição da escravatura. Palhano lembra bem do dia em que chegou a notícia do fim da escravidão. Era o dia seguinte ao ato da princesa Isabel e a boa nova chegou da Corte por telégrafo. O fazendeiro quis que os agora já ex-escravos fossem informados imediatamente.

“O sino da varanda começou desde logo cedo a badalar em frente à capela e os pretos, intrigados com a extemporânea chamada, foram se reunindo no pátio em frente, mal iluminado pela luz pálida dos candeeiros de azeite”. Foi neste cenário que o tio Otaviano, antigo autor de versos abolicionistas, anunciou o grande fato: “Vocês estão todos livres! Não há mais escravos no Brasil!”. A reação, ao contrário do que se poderia esperar, foi de silêncio.

Os brancos, sorridentes, olhavam para o grupo de escravos da varanda, mas a quietude permanecia. Foi preciso que tio Otaviano descesse e fosse se colocar no meio dos escravos para repetir a novidade. Aos poucos, começou um crescente murmúrio, indicando que eles começavam a se dar conta que a abolição era uma realidade. Foi, novamente, o tio que conclamou o grupo para a festa, chamando um “viva” para a princesa Isabel e outros abolicionistas e decretando: “agora vão brincar tambor, vão se divertir”.

À noite e na manha seguinte houve festa, dança e cantoria. Os escravos não foram embora, “como seria de esperar em homens ansiosos de experimentar, fora das telas do antigo viveiro, as novas asas da Liberdade. Fez-se com eles um contrato verbal e quase todos, se não todos, voltaram à roça”, conta Palhano.

São muitas e muitas histórias. Cada capítulo é nomeado com frases que indicam três ou quatro histórias que serão contadas ali. Há histórias das viagens a cavalo que se faziam entre uma fazenda e outra, versos, trechos de cantigas e mais algumas travessuras de Palhano. Um livro rico e divertido, que, apesar do estranhamento causado pela linguagem antiga, encanta ao leitor que se interessa por conhecer um mundo tão diferente.

 

[1]JESUS, José Palhano – Farrapos de tempos idos… Rio de Janeiro: Casa da Moeda, 1950. 353 p.O autor era tio-avô de Mauricio Cadaval.

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