Ele me esperou pacientemente em cima do criado-mudo. Na capa, a fotografia em preto e branco do casario de madeira à beira da estrada, cruzado por postes e fios, num ambiente de céu nublado e árvores desfolhadas que lembrava inverno rigoroso; no primeiro plano, um automóvel preto, modelo dos anos 1920, e junto dele, a observá-lo, um homem em pé.
Foi Rosana quem o resgatou na caixa de livros que eu havia destinado ao descarte. O autor era um canadense de nome estranho – Michael Ondaatje.Nós havíamos chegado recentemente de Montreal, para ela motivação suficiente de leitura. Uma história de imigrantes no início do século XX.
– Você gostou do livro?
– Não me lembro, respondi displicente.
Na realidade, eu nem me lembrava de ter lido ou comprado aquele livro. Leio livros pelo prazer imediato que me proporcionam. Uma semana depois raramente me lembro da história, do tema ou do autor. Talvez não seja bem assim, pois a minha pequena biblioteca atual reúne apenas os livros que li e de que gostei, o que supõe alguma memória, se não da substância, ao menos do sentimento que o livro me provocou.
Rosana insiste: – Você deve ter lido; na primeira página há uma anotação a lápis, com a sua letra. A observação aumentou minha curiosidade. Era uma citação de Baudelaire: “A forma de uma cidade se modifica mais depressa do que o coração de um mortal”. Isso não me dizia absolutamente nada.
Passaram-se alguns dias, Rosana terminou a leitura e gostou muito.O livro ficou por ali me desafiando. Mesmo entretido com outra atividade, não resisti e li o primeiro capítulo. O estranhamento só aumentou, contrariando o que geralmente acontece quando releio um texto há muito esquecido. Costumo encontrar um ponto de contato, um personagem, uma maneira de escrever, mas desta vez nada.
Quem sabe pesquisando o volume encontro alguma pista? Na orelha descubro que o autor mora há muitos anos no Canadá, mas nasceu no Sri Lanka e foi educado na Inglaterra. É hoje um dos mais importantes escritores de língua inglesa. O personagem principal é Patrick Lewis, nascido na região de grandes florestas no interior do Canadá que migrou para Toronto na década de 20. A primeira página traz duas pistas: o livro custou R$ 22,00 e foi comprado na Livraria Ouvidor da Savassi, em Belo Horizonte. Na última página aparece a informação de que foi composto em abril de 1998, mesmo ano do copyright da edição brasileira pela Editora 34.
Dezoito anos é tempo suficiente para apagar completamente da minha memória uma atividade prazerosa? Prefiro achar que me emprestaram ou presentearam um livro que nunca li e que a anotação foi feita por alguma pessoa que tem a letra parecida com a minha. E a livraria? Detesto pensar que ela é um dos meus lugares preferidos em Belo Horizonte, cidade onde nasci e que visito quase todo ano.
Continuo a leitura e descubro outra anotação minha, desta vez pelo sublinhado de duas frases. A primeira diz que “Só a melhor arte consegue ordenar o caótico tumulto dos fatos. Só a melhor arte consegue realinhar o caos de modo a sugerir tanto o caos quanto a ordem em que ele há de se transformar”. A outra afirma que “A primeira frase de todos os romances devia ser: acredite-me, isso vai levar tempo, mas existe uma ordem aqui, muito tênue, muito humana. Siga em ziguezague, se quiser chegar a seu destino.”
O que se passava em minha cabeça quando destaquei essas duas afirmações? Na minha condição de hoje, nem suspeito o que seja. Na primeira frase, por exemplo, o sentido é exatamente o oposto do que acredito ser a arte. Para mim, a arte contemporânea é um fator do caos, que abre novos caminhos e ajuda a desconstruir o que já existe.
A cada página que leio confirma-se a hipótese de que jamais pus os olhos neste livro e, no entanto, são muitas as provas de que eu o li atentamente. Jogo a toalha e vou até o final sem uma conclusão.
Ah, já ia me esquecendo de mencionar o nome do livro: “Na pele de um leão”. Com ou sem memória posterior, vale a pena ler.