Dos Anjos veio a Brasília para se encontrar com a neta. Nem bem chegou, já está com saudade dos bichinhos. Bichinhos são as galinhas do seu quintal, uma delas com nove pintinhos, que ficaram aos cuidados de uma vizinha. Todo dia de manhã eles esperam pela comida na porta da cozinha e à tarde Dos Anjos joga água com a mangueira para refrescá-los, o galo fica muito feliz e abana as asas.
Dos Anjos tem 68 anos e mora numa pequena cidade do interior do Piauí. Pela carteira de identidade tem 71 anos, mas esta não é a sua idade real. Seu pai falsificou a data de nascimento no cartório para que ela pudesse casar mais cedo, ainda menor.
Há mais de vinte anos, Dos Anjos paga mensalmente os custos de seu funeral, que de vez em quando são reajustados. Atualmente a prestação está em vinte e cinco reais. Pelo contrato, a funerária vai providenciar tudinho, desde o túmulo até o cafezinho que será servido aos parentes e amigos que vierem para o velório. O serviço é completo: transporte, flores, velas, mortalha, auxílio para o padre e tudo mais. Muito importante é o caixão, que precisa ser resistente, de madeira grossa, e bem bonito.
Ela não confia inteiramente na funerária. Para se prevenir, costurou ela mesma a sua mortalha, toda em azul e branco, como a dos anjos. Está bem guardada em casa e, de vez em quando, é lavada e passada cuidadosamente para não manchar com o tempo. Apesar disso, ela teme que a funerária use a mortalha deles, bem feia, toda preta.
O motivo de tanta precaução é simples. Dos Anjos receia que, por falta de recursos, os parentes não deem a ela um enterro digno e comprem um desses caixões fininhos que se vê por ai.
Alguém pergunta: – e se a funerária falir antes do seu falecimento? Dos Anjos não acredita nisso. Faz pouco tempo, ela foi ao enterro de uma amiga, organizado pela mesma funerária, e estava tudo direitinho, conforme o combinado, até o cafezinho com açúcar. Cachaça eles não deram, mas isso não estava no contrato.
Dos Anjos espera tranquila pela morte, sem improvisos nem atropelos.