Tudo se passou em Belo Horizonte, de 1946 a 1964, num ambiente nada parecido com o de hoje. Isso me tranquiliza quando penso na possibilidade dos meus netos e bisnetos virem a ler esse relato nem sempre exemplar.
Jardim da Infância
Meu melhor desempenho escolar foi no jardim da infância da Escola Delfim Moreira, onde me formei com “ótimo aproveitamento”. E isso nada tem a ver – posso adiantar – com o fato de Dona Violeta Lott, minha professora, ser aparentada e amiga de meus pais. Eu era bom mesmo, principalmente no recorte de figurinhas com tesoura sem ponta e no canto orfeônico (canto em coral ensinado em algumas escolas naquela época). Eu me formei com oito anos porque faço aniversário em dezembro, mas nessa época já sabia escrever o meu nome e assinei meu diploma.
Grupo escolar
A partir daí o desempenho não foi tão bom, com algumas exceções. No Grupo Escolar D. Pedro II eu tinha uma queda toda especial pela professora (como todos os meus coleguinhas) e passei a acreditar que ela, percebendo isso, ajudava no boletim. Justiça seja feita: meu desempenho no teatrinho da escola foi brilhante quando representei D. Pedro I no Dia da Independência. Com a cabeleira de algodão branco e o uniforme de cetim verde que minha mãe fez, acho que emocionei a plateia na hora do Independência ou Morte.
No quarto ano do primário, como se dizia então, fui transferido para o Grupo Escolar Barão do Rio Branco. O único fato notável foi na formatura. Dona Irene Guimarães, a orientadora educacional, comentou na frente de todos os alunos da escola a minha redação de português, em que eu escrevi nescessárioao invés de necessário. A partir de então, procurei ser mais cuidadoso com a escrita. Puro pragmatismo que não se refletiu nas minhas notas de português. Às vezes achava que o meu bom desempenho tocando tambor na bandinha da escola, que desfilava no Sete de Setembro, me ajudou um pouco a passar de ano.
Ginásio e Científico
Fiz o ginásio no Colégio Dom Silvério, dos Irmãos Maristas. Na minha lembrança, as notas eram medianas. Quando consultei os boletins escolares que minha mãe guardou, fiquei surpreso ao ver que, com aquelas notas, eu ainda conseguia boas classificações. Entre meus alfarrábios, achei três certificados mensais de honra ao mérito por minha “aplicação e procedimento”, assinados pelo Irmão Ilídio Gabriel, o que não é muito considerando os quase 40 meses de duração do curso ginasial, mas prova que eu me esforcei.
Lembro-me bem de ter sido aprovado com louvor para ingressar na academia de letras do colégio, defendendo uma tese sobre Monteiro Lobato. Naquela época o autor de Reinações de Narizinho não era acusado de preconceito racial, mas de ser comunista e por isso minha tese foi uma ousadia, talvez uma temeridade.
Até aqui, embora o desempenho não fosse ótimo, eu passava de ano, às vezes com uma ou duas dependências (chamava-se segunda época) que me roubavam parte das férias. No primeiro científico o caldo entornou. Levei bomba em matemática, química e física e fui obrigado a repetir o ano. Diante desse resultado, os padres jesuítas do Colégio Loyola sugeriram delicadamente a meus pais que me transferissem para outro colégio, o que foi feito. Apesar do fracasso, eu tirava boas notas em desenho decorativo e o professor Gil Lemos sempre elogiava as minhas borboletas amarelas.
Fui para o Colégio Arnaldo, menos exigente e mais barato, onde atravessei os três anos do científico estudando pouco e sem reprovações. Lá comecei a atuar em política estudantil e fui eleito presidente do DACA – Diretório Acadêmico do Colégio Arnaldo. Logo passei a me relacionar com um grupo de colegas pouco afinados com os métodos dos padres alemães que dirigiam a escola. Um dos companheiros mais chegados era o Henriquinho que anos mais tarde se tornaria o cartunista Henfil. Entre outras iniciativas, montamos um cine clube no colégio, com o compromisso de não passar filmes “pornográficos”, categoria que na época se caracterizava pelas cenas de beijos prolongados. Como nem sempre era possível obedecer, os padres adotavam a estratégia de acender as luzes do auditório na hora dos beijos e amassos, com protestos veementes da plateia.
Nessa época (1958) colaborei para fundar a UEC – União dos Estudantes Católicos, entidade criada por inspiração dos donos de colégios religiosos “para combater os comunistas infiltrados na UMES – União Municipal dos Estudantes Secundaristas”. E andei simpatizando com o integralismo. Acho que essas adesões contribuíram para melhorar o meu conceito escolar junto aos padres da Congregação do Verbo Divino, que dirigia o Colégio Arnaldo. E assim rompi mais uma etapa da vida estudantil. Na formatura do terceiro científico recebi um cartucho vazio, pois havia ficado de segunda época em biologia, matéria em que jamais consegui decorar as classificações das espécies vegetais.
Lá pelo segundo científico, eu já havia desistido do integralismo e entrado na JEC – Juventude Estudantil Católica, que era vista como uma agremiação de esquerda, dirigida pelos freis dominicanos. Em pouco tempo me tornei membro da equipe de direção, um triunvirato que dirigia o movimento. Por extensão, passei a ter certa atividade de liderança no movimento estudantil de Belo Horizonte.
Faculdade
Era época de escolher um curso universitário. Eu oscilava entre arte e política; se fosse arte, eu tentaria arquitetura, se fosse política eu ingressaria em alguma faculdade de ciências humanas, como, por exemplo, sociologia (eu não fazia a mínima ideia do que se ensinava lá). Optei por esta última, pensando em me capacitar para fazer a revolução social.
A escolha não foi fácil. Desde criança, fui estimulado a me dedicar à pintura artística por duas figuras que sempre tive em alta conta. Titia, como chamávamos minha tia-avó Delfina Palhano, que pintava paisagens e naturezas mortas e guardava os meus desenhos dentro do seu oratório, e meu pai (Luiz Palhano Cadaval), um ótimo desenhista que me levou, ainda adolescente, para a Escola do Guignard. Em plena crise de adolescência, eu temia que a arte me fizesse gay como vários artistas; achei que o Curso de Sociologia, além de me preparar para a revolução, me tiraria daquele “mau caminho”.
O interesse pelas artes plásticas me rendeu dois empregos. Um deles, o primeiro que tive na vida, foi aos 14 anos, na empresa de engenharia em que meu pai trabalhava. Por algum tempo, fui desenhista-aprendiz de instalações elétricas e hidráulicas. Depois, durante mais de seis anos, trabalhei como desenhista no Banco da Lavoura de Minas Gerais, preparando material audiovisual para treinamento dos bancários.
Não sei bem como passei no vestibular da Faculdade de Ciências Econômicas, onde estava o Curso de Sociologia em 1960. Li apenas dois livros e até hoje não sei se os entendi muito bem: Formação Econômica do Brasil, de Celso Furtado, e Formação Política do Brasil, de Caio Prado Junior. Pensando bem, os candidatos eram poucos e alguma osmose resolveria tudo (para os estudantes da época, osmose era absorver conhecimentos andando com os livros debaixo do braço).
Na Faculdade eu estudava pouco, mas nunca repeti um ano e, curiosamente, era considerado um bom aluno, ao menos pelos meus colegas. A verdade é que a política estudantil e sindical não deixava muito tempo para os livros e o aprendizado se restringia a ouvir as aulas matutinas. Além de participar ativamente do Diretório Acadêmico da Faculdade, da JUC – Juventude Estudantil Católica e, mais tarde, da AP – Ação Popular, um movimento da esquerda católica, eu trabalhava no Banco da Lavoura de Minas Gerais no período da tarde, atuava no sindicato dos bancários e à noite fazia bicos numa empresa de audiovisual que criei com dois colegas. Viajava pelo interior de Minas, quase sempre em missões políticas, frequentava os bares da juventude, como o Bucheco, e namorava nas horas vagas, quando havia. A vida doméstica consistia em dormir e discutir com meus pais sobre minhas ideias políticas, das quais eles discordavam radicalmente.
No dia primeiro de abril de 1964, quando eu estava no último ano do curso, minha casa amanheceu cercada por soldados do Exército armados com metralhadoras. Vieram me prender. Quando sai da prisão fui informado que eu havia sido demitido do emprego por causa de minhas atividades subversivas. Aos trancos e barrancos, traumatizado e respondendo a dois inquéritos policiais militares, consegui me formar na Faculdade com a ajuda de alguns professores e colegas. Decididamente, os militares não estavam preocupados com o meu desempenho escolar.
Hoje, olhando pelo retrovisor, acho que a escola formal me deu alguns conhecimentos básicos que foram úteis durante toda a minha vida. Aprendi a ler e a escrever, sei algumas operações de aritmética, decorei a tabuada e outras coisas importantes.
Num outro plano, o que a escola formal me ensinou de mais importante foi aprender a aprender. Em outras palavras, método de aprendizado. Entre outras coisas, descobri – a duras penas – como obter conhecimentos específicos, como encontrar e consultar fontes quando necessário. Alguns chamam isso de “metodologia científica”, nome que acho pomposo e impreciso para operações às vezes tão simples como consultar um dicionário ou esquematizar um relatório. Os conteúdos, estes eu aprendi mesmo fora da escola, alguns extraídos meio a fórceps, outros tranquilamente na vida cotidiana, junto aos parentes, amigos e colegas de trabalho.
Pensando bem, o meu desempenho escolar não foi tão ruim quanto eu às vezes imagino.