O bonde da Floresta
Eles se conheceram na Rua da Bahia, em Belo Horizonte. Saindo do trabalho com Juvenal, Diva notou o rapaz moreno, de olhos vivos e testa larga conversando com Jorge Werneck, seu ex-colega na escola da Da Alzira Lobo. Bom motivo para parar e bater um papo. Logo soube que o rapaz se chamava Luiz e era estudante de engenharia. Não era de hoje que ele acompanhava à distância aquela moça sorridente, de pele muito clara e cabelos curtos, vestida com elegante simplicidade e que chamava atenção pela suavidade de sua beleza.
Foi Jorge quem sugeriu o encontro ocasional na Rua da Bahia, para romper de vez com a timidez do amigo. A conversa já ia animada, quando veio a sugestão inevitável. Que tal um sorvete no Bar do Ponto? Eu acompanho vocês até lá, mas não posso ficar, disse Juvenal; a Ilda está me esperando. Jorge ainda ficou um pouco, mas logo se afastou, discretamente, juntando-se ao grupo de colegas que proseava ao lado.
Luiz e Diva emendaram uma conversa longa, como quem não quer perder o momento. Ela contou que havia se formado há pouco tempo na Escola Normal e que, enquanto não arranjava emprego como professora, tinha pegado um bico com Juvenal na Loteria Mineira para ajudar na contabilidade. Foi lá, onde era contador, que ele conheceu sua irmã, Ilda – paixão fulminante – e estão casados há pouco. Fazer lançamentos no livro caixa não era propriamente o que Diva queria da vida. Mas, em vista das dificuldades financeiras que sua família enfrentava, doze filhos e a saúde debilitada do pai, os filhos tinham que se virar muito cedo, mesmo as moças que, em outras circunstâncias estariam esperando marido e ajudando nas tarefas de casa. E você? Pelo jeito não é mineiro. Não, disse Luiz, eu nasci no Maranhão, mas, muito novo ainda, fui morar no Rio de Janeiro com minha família. Depois que o meu pai morreu, mudamos para Belo Horizonte, minha mãe, eu e meu irmão Syr. Quando terminar a faculdade, se der sorte, arranjo um emprego por aqui mesmo. Ao barulho dos bondes e alarido da rapaziada, o papo continuou por algum tempo, os dois ignorando o que se passava em volta.
Bem, a conversa está boa, mas a essa hora mamãe está me esperando já aflita. Moro numa chácara, ali na Rua Sapucaí, na Floresta. Com essas palavras, Diva, ao mesmo tempo pesarosa e feliz, despediu-se, atravessou a Avenida Afonso Pena e foi tomar o bonde, logo ali na frente do Bar do Ponto. Luiz estava eufórico e nem se lembrava mais da prova de cálculo da manhã seguinte. Seguiu noite adentro, no Bar do Ponto, festejando e comentando com Jorge e os outros colegas o sucesso do “encontro ocasional”.
O namoro continuou nos dias, nas semanas e nos meses seguintes, cumprindo o mesmo ritual. Encontravam-se sempre no final da tarde, Diva descendo a Rua da Bahia, depois do trabalho, e Luiz esperando por ela em frente ao Bar do Ponto. Juntos, pegavam o bonde para a Floresta. Nada de descer na Avenida do Contorno, ponto mais próximo da Chácara, pois a conversa era longa para um percurso tão curto. Seguiam até o final da linha, na Rua Pouso Alegre e voltavam. Diva descia na Contorno com Sapucaí e Luiz continuava até a Avenida Afonso Pena, onde tomava um outro bonde, saltando em frente ao Colégio Arnaldo. Dali era um pulo até a Bernardo Monteiro 921, onde ele morava. Ambos guardavam uma distância prudente da casa do outro, intimidade que seria excessiva na falta de um compromisso mais firme. E, cada vez mais foram se encontrando um no outro. Em 1927, quando começaram o namoro, Diva tinha 21 anos e Luiz 23.
O lugar desse encontro era Belo Horizonte e já havia se passado quase três décadas desde que a cidade fora fundada, embora fosse ainda um centro jovem e vibrante.
Belo Horizonte nos anos 20
Os anos vinte marcam uma época romântica da história da capital de Minas. Entre passeios de bonde e sessões de cinema, entre conversas nos cafés e o footing, a vida seguia alegre. Belo Horizonte era a “Cidade-Jardim”, onde o verde das árvores saltava das ruas e invadia as casas, tomando quintais e pomares.
Nesse período, a capital viu nascer a geração de escritores modernistas que mais tarde iria se destacar no cenário nacional. Carlos Drumond de Andrade, Cyro dos Anjos, Luís Vaz, Alberto Campos, Pedro Nava, Emílio Moura, Milton Campos, João Alphonsus, Abgar Renault e Belmiro Braga, reunidos no Bar do Ponto, no Trianon ou na Confeitaria Estrela, eram rapazes inquietos que mudaram o panorama da literatura brasileira.
No campo das artes e da cultura, a cidade experimentou um grande desenvolvimento. Enquanto o Teatro Municipal vivia anos de glória, novas salas de cinema eram inauguradas como os cines Pathê, Glória, Odeon e Avenida. Em 1926, o maestro Francisco Nunes fundou o Conservatório Mineiro de Música. No ano seguinte, era criada a Universidade de Minas Gerais. Em 1929, fundou-se Automóvel Clube, ponto de encontro da elite belo-horizontina.
Como um reflexo do fim da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a indústria de Belo Horizonte ganhou impulso na década de vinte. Os serviços urbanos foram ampliados para atender a uma população sempre crescente. Parecia, finalmente, que a modernidade tinha chegado à Capital. Foram inauguradas grandes obras, como o viaduto de Santa Tereza, a nova Matriz da Boa Viagem e o Mercado Municipal. Os automóveis circulando pelas ruas tornaram-se comuns, exigindo a criação de um código de trânsito e de auto-escolas. Surgiram também os auto-ônibus, complementando os serviços de bondes.
Como prova do desenvolvimento e do prestígio, Belo Horizonte recebeu a visita dos reis da Bélgica, em 1920. Na ocasião, toda a Praça da Liberdade foi reformada, adquirindo o seu aspecto atual. Em 1922, para comemorar os cem anos da independência do Brasil, a Praça 12 de Outubro passou a se chamar Praça Sete de Setembro e ganhou o famoso “Pirulito”.[1]
Texto adaptado de http://portalpbh.pbh.gov.br. Localizar no “Mapa do Site”: História/Coletâneas de História/História de Belo Horizonte/Anos 20 e 30 – A poesia toma conta da cidade. Pesquisa feita em 18/11/2008.
Para namorar, bem melhor do que o bonde da Floresta, sempre apinhado de gente na saída do expediente, eram as festas no clube Belo Horizonte ou na casa do Dr. Hugo Werneck, pai do amigo Jorge. Nos intervalos da dança havia sempre uma varanda ou uma sombra no jardim, sob o céu estrelado, onde se podia roubar um beijo e sentir o arrepio de uma carícia.
O noivado
Depois de dois anos de namoro, Luiz ainda não estava formado, mas achou que era hora de começar vida nova. O ponto de partida era o noivado e isso tinha lá os seus problemas. Embora nenhum dos dois tivesse entrado na casa um do outro, as famílias já sabiam do namoro e até mesmo desejavam uma aproximação maior. Mas, daí a enfrentar DaNazinha e “seu” Francisco, pais de Diva, ambos muito austeros, ele até mesmo ríspido, havia uma distância razoável. Juvenal, já bem entrosado na família, foi convidado para pedir a mão de Diva. E lá se foram, no dia marcado, muito enfatiotados, Da Belinha, Syr e Luiz, à chácara dos Guimarães.
A entrada da chácara era pelo alto da Rua Sapucaí, de onde se avistava, ao fundo da ribanceira, os trilhos e a estação da estrada de ferro. No centro do terreno, cercado de arame farpado coberto de maricá, ficava a casa, simples e ampla, de dois pavimentos. Chegava-se ao andar de cima por uma escada rústica de cimento, sem corrimão; nele ficavam a sala, a cozinha e os quartos do casal e das filhas. Os filhos e os agregados, gente conhecida de Sabará, ocupavam o andar de baixo. À noitinha, quando chegaram, não dava para ver a horta e o pomar, que Luiz só iria conhecer dias mais tarde. O Rubin, um pedreiro espanhol que trabalhara para o seu Francisco, havia plantado uma macieira junto à porta da cozinha que, desafiando o clima quente da cidade, dava frutos todos os anos. Para sua surpresa, Luiz descobriu também que cada filha tinha uma árvore: a de Diva era uma mangueira.
A iluminação era precária e havia pouco tempo que substituíra os lampiões a querosene. Não havia banheiro,As necessidades eram feitas numa privada de madeira fora da casa e o banho era tomado com bacia, nos próprios quartos, onde ficavam também os enxergões[1], com colchões de palha, dispostos um ao lado do outro. Na cozinha, chamava a atenção um grande fogão de rabo, à lenha, sempre acesso, com o bule de café fumegante.
Foram recebidos por Diva e Juvenal, acompanhados de DaNazinha. Seu Francisco, já muito doente, esperava na sala para evitar sereno. Aos poucos chegaram os outros moradores da casa: as filhas – Olga, Ara, Ilda, Dulce, Dora e Zulma – os filhos, Ninico, Tenente, Elton, Nhonhô e Elminho e os agregados, que à época do noivado eram Otávio Sepúlveda, Martiniano, Adauto e Zezinho. Para alivio de todos,a visita foi breve e chegou ao fim sem maiores percalços, apenas envolta num clima que estava longe de ser descontraído, talvez pelo desconhecimento mútuo, talvez pela presença de gente refinada, como Da Belinha e seus filhos. O licor de jabuticaba, servido com olho de sogra, bala de coco e biscoitinhos de nata, foi muito elogiado e ajudou a quebrar um pouco a formalidade do ambiente.
Durante o noivado, Luiz podia frequentar a casa, mas com hora marcada para se retirar. Os encontros no bonde da Floresta continuaram. Saídas à noite só acompanhados e os “paus de cabeleira” mais comuns eram Dora e Luiz Souza Lima, amigo de confiança da família. Já idosa, Diva se lembrava com saudade das festas dessa época em casa de suas primas, filhas de Altina e Aurélio Lobo.
Até o casamento, Da Belinha continuou a ser quase uma estranha para Diva, que apenas uma ou outra vez entrava na casa da Bernardo Monteiro, recém construída, sempre em ocasiões formais, como uma festa de aniversário ou durante a visita anual de Nossa Senhora. A verdade é que, duas personalidades fortes, uma não simpatizava com a outra e essa dificuldade viria a se acentuar mais tarde, depois do casamento.
Da Belinha, cujo nome de casada era Izabel Palhano Cadaval, nasceu em Codó, no Maranhão, onde seu pai era um grande fazendeiro, produtor de algodão e dono de muitos escravos. Terminada a guerra civil americana, os Estados Unidos voltaram a ser grandes exportadores de algodão e a agricultura algodoeira do Nordeste brasileiro não suportou a concorrência, entrando em decadência. A família de Da Belinha abandonou a fazenda Mata Virgem e radicou-se principalmente em São Luiz e no Rio de Janeiro. Izabel conheceu seu futuro marido, o então Capitão de Fragata Luiz de Azevedo Cadaval, natural da cidade de Rio Grande (RS), quando estava visitando uma prima em Belém. Casaram-se e moraram em várias cidades, fixando-se no Rio de Janeiro por volta de 1910, época em que Luiz Azevedo foi nomeado Contra-Almirante da Marinha. Seu filho, também batizado Luiz, nasceu no Maranhão, mas ainda pequeno mudou-se com a família para o Rio, onde eles moravam numa mansão da Rua Conde do Bonfim, na Tijuca.
Quando o marido morreu de um acidente em 1912, Izabel tinha 36 anos e dois filhos pequenos, Syr, de 14 anos, e Luiz, de apenas 7 anos. No meio de uma crise de depressão, viajou para Belo Horizonte a fim de se encontrar com sua irmã mais velha, Luiza, que estava passando uma temporada ali. Gostou tanto da cidade que para lá se mudou com os dois filhos por volta de 1916-1917.
A pensão de Almirante que o marido deixou para Da Belinha dava a ela uma condição financeira excepcional na Belo Horizonte do início do século, uma cidade de funcionários públicos e operários. Tanto é assim que, depois de curta temporada numa mansão na Rua da Bahia, Da Belinha alugou a casa do então Presidente da República, Rodrigues Alves, na Rua Aimorés, quando ele se mudou para o Rio de Janeiro. O passo seguinte foi construir seu próprio bangalô na esquina da Av. Bernardo Monteiro com Padre Rolim.
Com Da Belinha e os filhos, vieram morar em Belo Horizonte duas irmãs, Delfina e Tertuliana (que todos chamavam Tetê). Delfina, uma mulher delicada e sensível, era três anos mais velha do que Belinha e cedo ficou com problemas de audição e locomoção, quase não saindo de seu quarto. Tetê, uma mulata forte e sorridente, já de idade avançada, era tratada como empregada da casa, embora fosse filha natural do pai de Belinha com uma escrava da fazenda, condição que nem sequer podia ser mencionada na família. Viveu até os 105 anos.
Uma renda confortável, o convívio com família de militares de alta patente, uma criadagem sempre à disposição e o ir-e-vir cosmopolita deram à Belinha ares de aristocracia. Junte-se a isso uma personalidade forte e tem-se uma mulher sempre ativa que quer impor os seus padrões a todos que a rodeiam, custe o que custar. Hábitos requintados de correspondência, culinária elaborada, prática religiosa, elegância no vestuário e nos modos de se comportar em público eram cultivados, tanto quanto o desprezo pelos serviçais e pessoas humildes. Isso não combinava, decisivamente, com Diva.
O casamento de Luiz e Diva foi muito simples, prenunciando o estilo que levariam a vida inteira. A cerimônia íntima reuniu um pequeno grupo de parentes e amigos na chácara onde Diva morava. Seu Francisco já estava muito doente e sem condições de arcar com as despesas de uma festa e, por isso, não houve convites. Alguns dias depois, os recém-casados colocaram no correio uma mensagem nos seguintes termos: “Diva Guimarães Cadaval e Luiz Palhano Cadaval participam seu casamento. 15-4-929. Av. Bernardo Monteiro, 921. Bello Horizonte”. Da Belinha não gostou, pois queria ver os nomes das famílias impressos no comunicado. Não houve acordo.
O endereço foi o da primeira residência dos dois, a própria casa de Da Belinha, que tinha quatro quartos além de um apartamento anexo, dando para a Rua Padre Rolim. Não era espaço suficiente para abrigar duas personalidades fortes, como ficou claro depois do nascimento de Maria Neuza e de Paulo Nery.
Pé na estrada
Quando Luiz se formou, em dezembro de 1931, Maria Neuza já estava com sete meses e Diva grávida de Paulo, que nasceria em meados do ano seguinte. Em plena crise econômica, não estava fácil conseguir emprego como engenheiro. O que estava mais à mão era trabalhar para o Governo na construção de estradas e ferrovias no interior do estado. Ele não hesitou e, literalmente, pôs o pé na estrada com toda disposição. Diva ia atrás com os meninos pequenos, morando em condições precárias nas cidades próximas às obras. Luiz ora ficava nos canteiros de obras, ora morava na cidade, dependendo das possibilidades. Moraram em tantos lugares que a memória não conseguiu guardar todos: São José da Barra, Itapecerica, Lavras, Formiga, Caxambu, Poços de Caldas …
Para Diva, o mais difícil não era o desconforto, ao qual estava acostumada na chácara da Floresta. Ela sentia mesmo era a falta do convívio com a mãe e as irmãs, tão importante para quem, inexperiente, entre 20 e 30 anos, tinha que lidar com duas crianças pequenas. Às vezes havia uma surpresa.
Nessa época, Nhonhô, irmão mais novo de Diva, trabalhava com Luiz na construção de uma estrada perto de São José da Barra. Diva, com Paulo e Maria Neuza ainda bebês, vivia na cidade próxima, quase um povoado, sem notícias de casa e isolada de tudo e de todos. O telefone do posto mais estragava do que funcionava. A vontade era de chorar e sair correndo com as crianças para encontrar uma alma amiga, não importa quem fosse. Ah, se eu soubesse dirigir, pensava ela, pegava o Ford bigode de Luiz e me mandava para Belo Horizonte. Era uma sexta feira e ela saiu a perambular, junto da casa, enquanto os meninos dormiam. Mas, onde estava o carro? Será que roubaram? Quando Luiz chegar vai ficar uma fera, foi o primeiro pensamento que lhe veio à cabeça. Não deu outra: voltando do canteiro de obras, já ao anoitecer, Luiz ficou branco ao receber a notícia do sumiço do carro e correu para falar com o delegado, que a essa hora já comemorava o fim de semana na venda do Tonico. Entre “vamos ver” e “fique calmo”, nada foi feito e os dois, Diva e Luiz, passaram um fim de semana de cão. Se ao menos Nhonhô estivesse por aqui para ajudar na busca … Mas não, ele havia pedido uma licença e, na sexta à tarde fora para Belo Horizonte passar o fim de semana. Feliz dele, na flor dos 20 anos.
Domingo, uma tarde modorrenta, Luiz sintoniza o rádio na sala quando escuta buzinadas insistentes e o barulho inconfundível do Fordinho. Não tinha dúvidas, era ele. Diva deixou Paulo no berço, veio correndo e os dois foram para a rua, com o coração acelerado, para receber o bem-vindo. Eis que surge, no meio do poeirão, Nhonhô descendo do carro, todo feliz, e ao seu lado, DaNazinha, com ares de cúmplice. A satisfação de ver a mãe abafou em Diva a vontade de espinafrar Nhonhô que havia roubado o carro para fazer farra em Belo Horizonte. Luiz não ousou soltar a sua raiva e Nhonhô recolheu-se, estrategicamente, à venda do “seu” Tonico para comemorar o fim do domingo.
O vigor da juventude ainda estava lá, mas, depois de alguns anos de vida nômade, o bom senso prevaleceu e Diva resolveu instalar-se na casa de Da Belinha e esperar o retorno de Luiz nas folgas do trabalho. Foi muito bem recebida de início. Entretanto, nora e sogra repetiram a saga milenar e, pouco a pouco começou a faltar espaço para o mando. O conflito se instalou. A gota d´água foi a insinuação, mil vezes repetida por Da Belinha, de que Diva deveria entregar Maria Neuza para ela criar. Não fora assim com ela mesma, no Codó, criada pela irmã mais velha depois que a mãe adoeceu? Diva engolia em seco e deixava passar. Até que um dia, sem mesmo falar com Luiz, alugou uma casa ali perto, na Rua dos Otoni, e mudou-se para lá. Luiz, já cansado com as rinhas, concordou de imediato, mas começou a tomar providências para construir a sua própria casa. Com a ajuda da mãe, que não conseguindo aninhar o casal preferiu a proximidade, comprou um terreno na Rua Padre Rolim. A construção da casa terminou em 1933 e, com alguns acréscimos, continuou lá 75 anos depois, cercada de arranha-céus.
Os tempos eram difíceis e, para construir a casa, Luiz tomou um empréstimo de 20.000 contos de reis na Caixa Econômica.
De início era uma casa térrea com três quartos, duas salas conjugadas, banheiro e cozinha. Na frente e do lado esquerdo uma faixa de jardim com canteiros e piso de tijolo. O murinho, como era chamado, marcava o limite da rua e, mais do que proteção, como a grade alta que o substituiu anos depois, era o lugar preferido das crianças para observar, sentadas, o que se passava na rua.Três degraus de escada davam acesso ao alpendre e à porta da sala. O revestimento das paredes externas era cinzento, de pó de pedra que refletia a luz do sol nos fragmentos de mica, produzindo um efeito mágico que encantava os olhos. Do lado direito ficava o portão de acesso a um corredor externo para o qual se projetavam as janelas dos quartos. No fundo, uma faixa estreita de quintal e o barracão com o tanque ao lado, área de serviço e de moradia das empregadas.
Com o aumento da família, a casa ganharia, mais tarde, dois outros quartos e uma copa, mediando o espaço entre a sala, a cozinha e o banheiro.
Entre a casa de Da Belinha, de esquina, e a de Luiz e Diva espremia-se um pequeno apartamento que, por muitos anos, foi alugado pelo Dr. Juvenal, colega de serviço de Luiz, e sua esposa, Da. Dina, que não tinham filhos. A entrada era por um pátio ladrilhado que dava frente para a Rua Padre Rolim, mas havia também uma porta, sempre trancada, que comunicava o apartamento com o alpendre da casa de Da. Belinha. As crianças circulavam entre esses espaços como se fossem a sua própria casa, sem noção de propriedade ou privacidade, coisas que só diziam respeito aos adultos.
Hoje, a rua é um espaço agressivo que todos evitam, na medida do possível. Nem sempre foi assim. As redondezas da casa de Luiz e Diva eram, por excelência, um espaço de convivência e socialização de crianças, jovens e idosos. Todos se conheciam. Além do Dr. Juvenal e Da. Dina, a Da. Izaura e seu Levy Leste, Da. Iá e Da. Elza, Dr. Gastão Behring e Da. Mariana, Dr. João Vasconcellos e Eunice, Dr. Ismael Faria, Da. Liça, Cel. Bragança, Heitor Menin, Mario Coutinho e Cecília, Da. Milota, família d´Ávila, os Tenuta, Da. Benvinda de Carvalho, Zé Santeiro e Lourdes, as “compridas” e tantos outros. Nos sobrados da frente ficavam duas repúblicas, onde moravam estudantes de medicina, – a Amor e Cana e a Canaã – e a casa da Da. Anita, que alugava quartos e dava pensão para estudantes.
De onde pra onde caminha o sol na Padre Rolim? Pedro Nava[2], que morou ali com sua mãe nos tempos em que Luiz ainda era adolescente, responde de forma belíssima num dos seus livros de memórias: “Esse logradouro corta o bairro e a cidade na direção leste oeste, desaguando, lado oriente, na Avenida do Contorno e lado ocidente, na Avenida Mantiqueira. Essa posição lhe dá sol dia inteiro e ela fica cor de ouro branco pela manhã, de ouro fino à luz zênite, de ouro vermelho à tarde e de ouro preto à noite. Se tem lua – então fica de prata. Sua luminosidade contrasta com o tom acobreado e crepuscular da Avenida Bernardo Monteiro ainda cheia dos velhos fícus de outrora. São estes e a terra da alameda central do logradouro – que dão ao lugar seus coloridos especiais. Duas cores só – o verde e o marrom – mas ambos com todas as nuanças graduadas pelas estações, pelas noites claras ou de breu, pelos dias limpos ou de chuva, pela hora do nascente, do meio-dia, do poente.”[3]
Com o passar do tempo, Luiz conseguiu um emprego na Secretaria de Viação e Obras Públicas, que acumulou, até quase o final da vida, com outro na SIT, empresa de construção, onde cuidava de instalações elétricas e hidráulicas. Os filhos foram nascendo mais ou menos a cada três anos. Depois de Maria Neuza (que todos chamavam Maninha) e de Paulo, vieram Carlos Alberto, Maria Silvia, Maurício, Maria Lúcia e Daisy. Todos receberam nomes duplos, embora o tempo tenha mantido no esquecimento o Nery de Paulo, o Eduardo de Maurício e o Maria de Daisy. O Hospital São Lucas, com uma das melhores maternidades de Belo Horizonte, ficava logo ali, a poucos metros da Padre Rolim, mas Diva teve todos os sete filhos em casa.
Aos poucos, a situação econômica de Luiz foi melhorando e o empréstimo da Caixa Econômica pôde ser pago. Mas, a verdade é que, com o aumento da família, o dinheiro não chegava até o fim do mês. Em alguns momentos, a ajuda de Syr, engenheiro da Rede[4] que ganhava bem e não tinha filhos, foi providencial, completada pelos mimos de Da Belinha.
Com todas as dificuldades, Luiz sempre teve um carro velho. Paulo sabe contar histórias deliciosas de alguns deles, acontecidas nos anos 50[5]. Antes e depois, outros carros fizeram parte da família, sem que a memória os tivesse alcançado.
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O programa de domingo era sempre o mesmo. De manhã, Diva ia à missa na capela do Colégio Arnaldo com os meninos, quase sempre acompanhada de Da. Belinha, Titia[6] e Tetê. Luiz, ateu confesso, se recusava a ouvir os sermões dos padres alemães que, segundo ele, eram “cacetes demais”, cheios de promessas de inferno para os pecadores da paróquia. O almoço era em casa, não faltando o macarrão com frango assado, de praxe aos domingos. À tardinha, uma visita, na maioria das vezes à Da. Nazinha, mãe de Diva, que, depois que o marido falecera, morava com Olga na casa da Rua Silva Ortiz.
Uma vez ou outra, Luiz passeava com os meninos no Parque[7], onde as diversões preferidas dos meninos eram dar farelo de pão para os patos que nadavam no pequeno lago circular e brincar nas gangorras e escorregadores.
A CASA DA PAMPULHA
Com essa rotina domingueira, a família só poderia receber a boa nova com alegria. Numa segunda feira, à hora do jantar, Luiz contou que havia comprado um terreno na Pampulha, isto é, vocês entendem…, perto, mas não ao lado da represa da Pampulha. A ideia veio do Schmidt[8], seu colega na Secretaria de Viação, que também comprou um terreno na mesma área e já se preparava para construir um chalé. Você entende, Diva, agora já são quatro meninos e precisamos arranjar uma diversão melhor para eles nos fins de semana; além do mais, já acabamos de pagar o empréstimo da Caixa Econômica e o terreno é bem barato. Mas, não fica muito longe? perguntou Diva. Bom, não é como daqui até ali na esquina, mas acho que dá para ir com facilidade. Para chegar lá basta pegar o bonde até o final da Antônio Carlos, descer a pé para o Aeroporto, atravessar a pista e pronto. O ônibus é uma opção melhor, pára na frente da estação de passageiros do Aeroporto, mas custa mais caro. As obras que o Juscelino está fazendo na Pampulha certamente vão valorizar – e muito – os terrenos por lá.
Negócio feito, agora era tomar posse do terreno e, quando der, construir uma casinha pequena, que possa crescer com a família. A essa altura a família já incluía, além de Maninha e Paulo, já grandinhos, Nonô e Naná[9]. Quando Maurício nasceu, a casa da Pampulha já estava pronta e havia algumas plantas espalhadas pelo terreno arenoso, sinais da vitória sempre precária contra a secura do solo e as saúvas, abundantes e famintas. A água vinha de uma cisterna escavada junto à cozinha. No início a água era retirada com balde, preso por uma corda à manivela, que, por sua vez, era apoiada num cavalete de madeira; mais tarde, como diz Paulo, veio o avanço da tecnologia e foi colocada uma bomba manual.
O terreno de 2.000 m2 era retangular e, no centro dele, foi construída a casa com uma sala grande, dois quartos, banheiro e, no fundo, uma cozinha com fogão a lenha. A iluminação era por lampião à gás com camisinha, que produzia uma luz muito forte.
Além de Luiz, Diva e os filhos, a casa da Pampulha era frequentada pelos parentes e pelos amigos de cada um, entre eles Tenente, Nhonhô, os primos, filhos de Ara e Octávio, Murilo Menin, Mario Lott e muitos outros.
Chegar até lá não era tão fácil como Luiz imaginava. Do alto da Avenida Antônio Carlos, final da linha de bonde, aquele bando de meninos e adultos, carregados de sacolas, balaios e pacotes, comandados por Luiz e Diva, descia o morro até a estação de passageiros do Aeroporto. Dali era preciso cruzar a pista de grama, onde raramente descia um avião, e seguir por um caminho de terra até o ribeirão[10]. A travessia era feita por uma pinguela[11] muito estreita que amedrontava até os mais experimentados. Titia era uma das que mais temiam a pinguela. Para atravessá-la, fechava os olhos e ia, passo a passo, conduzida por um dos sobrinhos. Alguns anos mais tarde, Daisy também empacava na pinguela, indo em frente a duras penas, com a meninada rindo a valer. Depois era só subir a meia encosta para chegar à casa.
O que se fazia lá? É Paulo quem explica. “Apesar de a terra ser muito ruim, só areia e cascalho, vivíamos plantando qualquer coisa, desde milho e mandioca a flores; de um dos lados do terreno plantei algumas mudas de eucalipto junto à cerca de arame farpado. Muitos fins de semana foram dedicados a tapar as bocas de formigueiros e introduzir fumaça de enxofre em uma delas com a ajuda de um fole para matar as formigas. Havia também muito pernilongo, mas os meninos não podiam reclamar disso. Ganhei de Nhonhô um radiogalena[12]; eu e Papai passávamos horas tentando sintonizar alguma estação com aquela geringonça que usava a cerca de arame farpado como antena. Quando conseguíamos, todo mundo vinha correndo, guardando silêncio absoluto para ouvir alguma coisa. Eu e o Mario Lott passávamos muito tempo no alto do morro, observando a pista do aeroporto e a Base Aérea, na esperança de ver um avião chegando ou saindo, o que era raro; se aparecia algum, era motivo de muita alegria e assunto para o resto do fim de semana. Certa vez alguém descobriu nas imediações da casa muitos pés de goiaba vermelha, repletos de frutos maduros. Logo catamos uma enormidade e Mamãe organizou a fabricação da goiabada. Voltamos para casa no domingo carregados de doce.”
Passear na casa da Pampulha era um “programa de índio”, mas sempre muito apreciado. Divertia-se à beça!
Com os filhos crescendo, mudando e casando, ninguém mais ia à casa da Pampulha. Diva contratou um caseiro para manter as coisas em ordem, mas, em vez disso, ele vendeu e cedeu partes do terreno a outras pessoas que construíram ali os seus barracos. Nos anos 70 a área se transformou numa grande favela e a casa da Pampulha virou apenas lembrança.
A VIDA CONTINUA
E assim, o tempo foi passando e a família crescendo. Os que eram meninos se tornaram adultos e fizeram suas próprias vidas, mas isso é outra história. Diva engavetou o sonho de ser professora e dedicou seu tempo a espalhar amor e firmeza para toda uma geração de pessoas, filhos, netos, bisnetos, parentes e amigos. Morreu aos 101 anos, em fevereiro de 2008. Luiz foi o esteio. Discreto e sorridente,era o espelho em que todos se miravam, silenciosamente. Parece ter sido feliz, apesar de uma longa doença na velhice. Morreu em Belo Horizonte aos 89 anos.
[1] Espécie de estrado de madeira com base trançada em arame.
[2]Pedro Nava,nascido em 1903, é reconhecido como um dos melhores memorialistas do Brasil. Formou-se em medicina pela Universidade de Minas Gerais em 1927.Sua obra mais conhecida, “Baú de Ossos”, foi publicada em 1972, seguindo-se “Balão cativo”, “Chão de ferro”, “Beira mar”, “Galodas trevas” e “O Círio perfeito”. Morreu no Rio de Janeiro em 1984.
[3] Pedro Nava, Galo-das-Trevas, Ateliê Editorial, São Paulo, 2003, p. 311 e 312.
[4] Rede Mineira de Viação, companhia de estradas de ferro do Estado existente à época.
[5] Ver “Os carros de Luiz” mais adiante.
[6] “Titia”: assim era chamada Delfina de Carvalho Palhano, irmã de Da. Belinha, pelos sobrinhos netos.
[7] Parque Municipal, flanqueado pela A. Afonso Pena.
[8]Eduardo Schmidt Monteiro de Castro, engenheiro.
[9] Naná é o apelido de Maria Silvia.
[10] Dreno da represa.
[11] Pinguela: tronco ou prancha que serve de ponte sobre um rio.
[12] Radio de galena: aparelho rudimentar de rádio no qual se usa o cristal de galena ou sulfeto de chumbo.